quarta-feira, 19 de maio de 2010

7Q5 – INFORME


Solicitam-me mais informações sobre o papiro 7Q5, datado de cerca do ano 50, identificado pelo paleógrafo e papirólogo J. O’Callaghan como Mc 6, 52-53.

1. Lembro que, nos registros publicado em Cultura e Fé, n. 81, indiquei algumas fontes de informação, confiáveis e acessíveis. Continuei ligado à descoberta de O’Callaghan, por considerá-la marcante. Procurei inteirar-me das repercussões do Simpósio de Eischstätt, Alemanha, 1991, que a apoiou.
Só encontrei silêncio. Os especialistas, em suas publicações, quando muito faziam referências ligeiras e lacônicas, próprias para desacreditar o fato.
Parece não suportam o abalo causado, pela identificação, à arquitetura das datações tardias dos sinóticos, teorizada por eles. Um eminente professor, para defender suas construções teóricas, chegou a proclamar, em artigo, que não se poderia alterar a datação tardia e, por conseqüência, seria inaceitável a identificação do 7Q5 como Mc 6, 52-53.
Ressai, aí, confessadamente, o “a priori” anticientífico em que se fundam os opositores.
Parecem adotar a mesma conduta dos “cientistas” dos séculos XIV e XV, que recusavam a priori o entendimento de que o planeta Terra não era o centro do Universo.
Onde fica a “objetividade científica”?
Seu raciocínio pode ser formulado assim: O 7Q5 é de cerca do ano 50, segundo os paleógrafos. Ora, se ficar provado que se trata de um fragmento de Marcos, implode-se a datação tardia dos Evangelhos estabelecida por nós, exegetas modernos. Logo, não podemos admitir se trate de um fragmento de Marcos.

2. A informação nova que tenho, nova pelo menos para mim, é a de que, curiosamente, a identificação papirológica do 7Q5 como Mc 6, 52-53 foi confirmada matematicamente.
Por solicitação de O’Callaghan, o célebre professor Alberto Dou, doutor em matemáticas e membro da Real Academia de Ciências de Madri, submeteu a identificação papirológica a cálculos de probabilidade.
O resultado confirmou a identificação de O’Callaghan, endossada por Carsten Peter Thiede e pelas atas do Simpósio de Eischstätt. O 7Q5 não pode corresponder a outro texto que não seja o de Mc 6,52-53.

3. O cálculo de probabilidade exclui dúvidas sobre a identificação.
a) Numa primeira hipótese, o Professor Dou trabalhou somente com o número de letras do fragmento. Sem especificação das letras. A possibilidade de um arranjo diferente de Mc 6, 52-53 foi de 1 contra 36.000.000.000.000. Nula, portanto.
b) Em segunda hipótese, o trabalho realizado com letras contidas no fragmento concluiu que a possibilidade de arranjo diferente de Marcos continua praticamente nula. Seria de 1 contra 900.000.000.000.
c) A terceira hipótese, última possível, buscou esgotar todas as possibilidades de variação, adotando até uma esticometria mais ampla do que a do papiro em tela. A conclusão sobre a possibilidade, mesmo em um texto esticometricamente mais extenso, foi de 1 contra 430 bilhões. Uma vez em 430.000.000.000 de opções. Mesmo nessa hipótese mais adversa à identificação do 7Q5 com Mc 6, 52-53, a probabilidade de um “acaso” contrário permaneceu nenhuma.
d) Indo mais longe, examinou-se essa possibilidade nenhuma de acaso. Impôs-se, então, a conclusão definitiva: Se a “possibilidade nenhuma”, de 1 contra 430.000.000.000 absurdamente acontecesse, teria que se referir a um texto dependente de Mc 6, 52-53. Pressuporia a existência do texto de Marcos.
A matéria foi esgotada, matematicamente. O resultado implica a conclusão definitiva de que o 7Q5 é fragmento de uma cópia de Marcos. De conseqüência, o Evangelho de Marcos foi escrito antes do ano 50.

4. A segunda informação, que talvez não seja nova para quem acompanha a questão, é a de que J. O’Callaghan concluiu sua obra definitiva sobre a descoberta do 7Q5 e sua identificação com Mc 6, 52-53. Contém a pesquisa detalhada de dezenas de anos, sua consolidação e mais a contribuição de diversos outros cientistas. Inclusive de opositores. No epílogo se encontra a análise matemática do Professor Alberto Dou, apontada no item anterior. O título da obra: LOS TESTIMONIOS MÁS ANTIGUOS DEL NUEVO TESTAMENTO – PAPIROLOGIA NEOTESTAMENTARIA.

5. Ainda sobre a datação do 7Q5, lembro que foi apurada pelo paleógrafo Roberts, de Oxford, sem contestação de outros paleógrafos. Houve um crítico textual, não-paleógrafo, que se opôs, mas sua oposição foi liquidada. O professor F. Rohrhirsch descobriu que o crítico textual, não-paleógrafo, se fundara em um programa equivocado inserido no computador e o denunciou em livro. Programado equivocadamente, o computador utilizado pelo contestante só poderia oferecer resultados equivocados.

A identificação do 7Q5 como Mc 6, 52-53 é definitiva. A redação do Evangelho de Marcos não é de após 70 ou 80 como divulgam para o povo, mas de antes do ano 50. O trabalho consciente e sério prestado por J. O’Callaghan à ciência lança aos arquivos mortos a datação tardia dos Evangelhos. E, por conseguinte, sem pretensão apologética alguma, confirma os testemunhos externos dos escritores cristãos antigos. Ratifica a tradição dos Santos Padres, como, em exemplo, Justino e Irineu.
Eno Dias de Castro

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Ecumenismo

Revista Cultura e Fé, n° 111 - 2005
Eno Dias de Castro - edcrs@uol.com.br


ECUMENISMO – ANOTAÇÕES


Consciência do dever de restaurar a unidade entre os cristãos, o ecumenismo não é um apêndice juntado à vida da Igreja. É um imperativo da sua própria ontologia.
João nos conta, em Jo 17,21, que o Senhor queria fôssemos todos um à semelhança da Unidade Trinitária. E, por Atos 4,32, sabemos como a Igreja logo no começo constituía um só coração e uma só alma.
Entretanto, o pecado da divisão aconteceu e foi multiplicado.
A multiplicação da divisão fez João Paulo II interrogar o mundo cristão, exclamando na Ut unum sint, 6: “Como é possível permanecermos divididos, se, pelo batismo, fomos imersos na morte do Senhor?”
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Parece, em um primeiro lance, que a questão da unidade na diversidade tem relação com a questão do uno e do múltiplo, posta em tempos recuados e formulada com insistência pelos filósofos gregos. Parece, porque a unidade é uma questão que emerge do fundo do ser humano. Algo assim como uma lembrança primordial, não explicitada. Uma saudade de plenitude por participação, que dorme no coração do ser marcado de finitude.
Evitando esse caminho da especulação filosófica, tento manter estas anotações no roteiro da fé. A Fundação do Senhor, a Igreja do Senhor, que aponta para a nova unidade dos homens, varões e mulheres, deve testemunhar a unidade nela mesma, sob pena de escândalo. Nenhum cristão pode permanecer indiferente ante as divisões.
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O coração dos que aderiram ao Senhor Jesus Cristo para valer anseia pelo retorno à comunhão plena entre todos os batizados, pela restauração da unidade na verdade e no bem-querer, respeitadas as diferenças legítimas.
Esse anseio deve tornar-se busca concreta. Busca da comunhão plena, na fé recebida dos Apóstolos. Deve. A busca se torna imperativa a partir daquilo de Jo 17, 21. E, para quantos fazem a experiência da alegria da pertença à Fundação do Senhor, à medida em que se informam e rezam, além de mandamento, o anseio pela unidade se torna uma paixão.
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Apaixonado pela união, pela participação em um só Cálice ao redor de um só Altar, o cristão em comunhão com Pedro se pergunta: quando chegará o dia? quando celebraremos a Páscoa todos juntos? quando voltará o tempo do começo? quando?
Há como que uma saudade daqueles dias em que todos eram um só coração e uma só alma. É como se a alma do cristão que experimenta esse fascínio tivesse a juventude da fé de dois mil anos atrás. O fascínio da saudade gera uma atmosfera real, tão real que, ao experimentá-la, o cristão se sente contemporânea daqueles que viveram Pentecostes.
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Será possível algum prognóstico sobre quando chegará o dia? Penso que não. Ainda não. Ao tratarmos da separação e da unidade, estamos diante do mistério do pecado e da graça. Isso é consabido, para os cristãos medianamente informados. A comunhão interior e formalmente completa entre os cristãos, depende de uma intervenção decisiva do Espírito Santo Paráclito, do Ruah da Verdade e do Amor, Sopro que purifica, unifica, unge e rejuvenesce a Igreja. É somente Ele quem poderá sanar as chagas das nossas rupturas e fazer com que se reconstitua o tecido da unidade. A condição, para essa intervenção, é a nossa conversão.
Precisamos todos postular a graça que nos pulsione a uma conversão verdadeira. Conversão de todos nós batizados. Penso na conversão que se impõe como consciência e tarefa. Conversão que deve implicar todas as comunidades de fé. Toda a Igreja. Ocidental e oriental.
Pressuposto e ao mesmo tempo sinal do processo de conversão é o diálogo intelectualmente honesto, para a busca da verdade, na humildade, no respeito recíproco e no mútuo querer bem.

O fundamental destas afirmações não é meu. Não constitui novidade alguma. Leão XIII, Bento XV, João XXIII, Paulo VI, gigante na busca da unidade, João Paulo II, heróico no abrir caminhos concretos rumo à unidade, o grande Atenágoras, abençoado Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla e seus dignos sucessores, todos proclamaram a necessidade da intervenção do Espírito Santo para que o retorno à unidade aconteça..
Hoje, Bento XVI, que, para mim, foi o teólogo da unidade, está iluminando, aplainando e aquecendo os caminhos abertos por seus antecessores.

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Não se pode fazer prognósticos sobre a restauração da unidade perdida. Entendo, entretanto, que nunca será demasia insistir, por todas as formas ao nosso alcance, para que não se apague em nossa consciência o mandamento da unidade. Não podemos deixar se extinga a chama da saudade dos tempos em que todos eram um. A unidade foi objeto de oração especial do Senhor.

Tentando manter a chama, prossigo com apontamentos sobre as rupturas ocorridas e sobre o modelo da unidade que penso deva ser buscada, cingindo-me às relações com nossos irmãos ortodoxos.
Faço apenas anotações. Descartei a idéia de tratar o tema do modo didático. Todo o católico informado tem noção bastante sobre o ecumenismo. Não o confunde com diálogo inter-religioso nem com pancristianismo.
Prossigo voltado para a separação ocorrida no Oriente (sécs. V e XI). No Ocidente as rupturas são quase inumeráveis. As comunidades que inicialmente se separaram em nome de Lutero (séc. XVI), por exemplo, de rupturas em rupturas entre si mesmas, já constituem milhares hoje. Por isso mesmo, é praticamente impossível distingui-las para agrupá-las segundo notas básicas, a fim de compreendê-las e situá-las perante o modelo de unidade a buscar.

Como se percebe, estou distinguindo as rupturas em dois grandes grupos, apenas pelo critério meramente geográfico. Rupturas do Oriente e rupturas do Ocidente. Faço isso para não complicar um simples trabalho constituído de anotações. No Oriente, vejo duas principais. No Ocidente, múltiplas. Nestas anotações, já sinalei, restrinjo-me às rupturas no Oriente. E, particularmente, à ocorrida no séc. XI.

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No Oriente, com repercussão, abrangência e continuidade, houve duas rupturas principais. Deu-se a primeira em 451. Foi a das Igrejas não-calcedonianas. A segunda, impropriamente marcada como ocorrida em 1054, foi a da Igreja Ortodoxa.
A ruptura de 451, que deu origem às Igrejas não-calcedonianas, ocorreu quando o desenho conceitual do mistério do Senhor Jesus Cristo já estava avançado. Já havia acontecido o Concílio de Nicéia (325). A formulação da fé na consubstancialidade do Pai e do Filho e também na humanidade assumida pelo Filho fora delineada. A Igreja una professava a fé de Nicéia, como fé das origens. Esta profissão de fé, esta unidade, desvela um pressuposto, o pressuposto de que havia unidade na estrutura da Igreja na qual se fundara aquele concílio.

Perceba-se que, em Nicéia, se tratava de guardar a fé da origem, a fé recebida dos Doze. Não estava em questão apenas a unidade relativa a uma expressão, a uma fórmula, a um modo de dizer determinada verdade de fé. As definições ali formuladas tinham como pressuposto a consciência da unidade no modo pelo qual a partir de Jesus, da Palavra de Jesus e dos Apóstolos, a Igreja se formara e se constituíra. No modo pelo qual o Cristianismo se configurara na história. Manifestava-se, então, a consciência de que a Igreja lá reunida era a Fundação do Senhor, contra a qual as portas do inferno nunca prevalecerão (Mt 16, 18).

É de ver que a fé comum, professada em Nicéia, revela que se tinha como verdadeira, em suas raízes e em seu caule, a Igreja reunida ali e naquela época. Para os Padres Conciliares todos, a Igreja, descrita na Escritura e na história, era a depositária da Palavra tal como se havia desenvolvido até o séc. IV. Significa que se tinha por intocável tanto a Escritura quanto a Igreja nela confirmada, relativamente à sua forma básica.

Nesse patamar de compreensão está incluído um fato decisivo: o fato de que os bispos, por força de sua ordenação sacramental e da Tradictio recebida por essa ordenação, encarnam a identificação com a origem, configuram a unidade com a origem, vivem a unidade da origem.
Está aí aquele fator essencial, proclamado, já no séc. II, como parte da estrutura eclesial, como elemento sustentador, a “successio apostolorum”.

Testemunha disso é Irineu, o teólogo maior do séc. II, divulgador da compreensão da apostolicidade da Igreja una. Falo de Irineu, bispo de Lyon, aquele que tinha nos ouvidos o eco da palavra do Apóstolo João, através de Policarpo, bispo de Esmirna, mártir.

Irineu proclamava, por volta do ano 180, que a Igreja verdadeira era “aquela que tinha a tradição dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens e que chegou até nós pela sucessão dos bispos” (Adversus Haereses, III; 3, 1-2). Aqui, lembro Ratzinger, em “Teoria de los Principios Teológicos”: “O conteúdo da tradição se transmite pela sucessão e a sucessão se dá pela ordenação. A ordenação é a forma sacramental da sucessão e o conteúdo da sucessão é a tradição”. O fato-suporte da estrutura eclesial, o fato identificador da Igreja, reconhecido pelos Santos Padres, desde a era apostólica, é a “successio apostolica”.
Isto não é testemunhado apenas por Irineu de Lyon. Clemente de Roma, e terceiro sucessor de Pedro, ordenado pelo próprio Pedro segundo Tertuliano, já proclamava, por volta do ano 96, o princípio da sucessão apostólica como fato sustentador da continuidade da Igreja no tempo (Carta à Igreja de Corinto).

Essa unidade estrutural da Igreja se manifestou até o Concílio de Nicéia. A Igreja-instituição, enquanto tal, era o lugar da Palavra na história, para todas as tendências representadas naquele concílio. O colegiado dos bispos validamente ordenados era a garantia e o sinal existencial da Igreja do Senhor.

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Sob o aspecto do princípio da sucessão apostólica como fato-suporte da estrutura eclesial, não há diferença entre as Igrejas do Oriente, que se separaram. As Igrejas lá separadas mantiveram o fato que as une à origem. As Igrejas não-calcedonianas, conhecidas como monofisitas, mantiveram a unidade sacramental, com bispos verdadeiros, tal como ocorreu com as Igrejas ortodoxas.

Distingue-se, entretanto, a ruptura de 451 da ruptura que costumam situar em 1054. A primeira, explicitada por ocasião do Concílio de Calcedônia, se fundou na formulação conceitual da fé sobre a natureza do Senhor Jesus Cristo. A segunda não se fundou em formulações conceituais da fé. Centrou-se, primeiramente, na questão da jurisdição do Bispo de Roma sobre a Igreja toda. Em um segundo momento a ruptura se aprofundou com a invocação de outras questões. Desde o “Filioque” até a interpretação de Mt 5,32.

Marque-se bem. Sublinhe-se. Nenhuma das duas separações significou oposição quanto à compreensão estrutural básica da Igreja como lugar da Palavra, na história, desde a origem e para sempre. Para o Oriente e para o Ocidente continuava o fato de que, ali, onde havia um bispo em comunhão com os demais, estavam os dons sacramentais da Igreja da origem. Completamente diferente daquilo que ocorreu no Ocidente, nas rupturas do séc. XVI.

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Atenho-me, no prosseguimento, ao Oriente e, nesse, à segunda ruptura, como anunciei antes. Àquela ruptura que se diz consubstanciada por Miguel Celulário, em 1054, em contrapartida à postura do Cardeal Humberto, emissário da Sé de Roma. A questão em foco foi a da recusa à intervenção da Igreja de Roma. À jurisdição do Sucessor de Pedro.

Quanto à jurisdição do bispo de Roma, que identificaram como “monarchia papae”, segundo o conceito que, equivocadamente, dela fizeram determinados segmentos, foi caracterizada como destruição da forma estrutural da Igreja dos tempos apostólicos. Um novo modo de ser teria substituído, na Igreja do Ocidente, a forma paleoeclesial.
Para o Oriente separado, a organização eclesial do Ocidente, concebida mais tarde como “societas perfecta”, centralizada juridicamente, monolíticamente codicizada, teria destruído a realidade original da comunhão de Igrejas locais, guiadas por seus bispos, cuja unidade colegial apontava para a comunidade dos Doze. A estrutura sacramental da Igreja teria sido sufocada, no Ocidente, por uma estrutura jurídica, sintetizada na formulação do primado de jurisdição do Bispo de Roma, que teria assumido a condição de monarca absoluto, a partir do Vaticano I (1870). Esse entendimento que se estabeleceu em espesso segmento do Oriente deve ser debitado, em parte significativa, à corrente maximalista católica do séc. XIX.

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Entretanto, se o Oriente separado se detiver no exame do que definiu o Concílio Vaticano I e aprofundar cada vez mais o diálogo, verá que os maximalistas ignoraram o capítulo IV da constituição dogmática Pastor Aeternus, editada pelo Concílio Vaticano I. Como ignoraram também o que ensinou Pio IX, na carta apostólica “Mirabillis illa constantia”, de março de 1875.
Observe-se a titulação do capítulo IV da Pastor Aeternus, que trata da infalibilidade. Lá está: “Do magistério infalível do bispo de Roma”.
Note-se que foi rejeitada pelos Padres Conciliares o título “Da infalibilidade do Bispo de Roma”, proposto para aquele capítulo. Por quê? Pelo simples fato de que o Concílio não reconhecia a infalibilidade de um homem particular, mas do magistério extraordinário da Igreja proferido, “ex cathedra Petri, urbi et orbi”, pelo Sucessor de Pedro. Isso se evidencia, quando, no mesmo documento, se proclama: “ (...) aos sucessores de Pedro não foi prometido o Espírito Santo para que, por revelação sua, manifestassem uma nova doutrina, mas que, com sua assistência, custodiassem santamente e fielmente expusessem a revelação ou o depósito da fé transmitido pelos Apóstolos”.
Houve, na mesma direção, oportuna manifestação do episcopado alemão contra circular secreta de Bismarck, descoberta em 1874, a respeito da jurisdição do Bispo de Roma.

Os bispos alemães foram claros. A instituição divina é o fundamento sobre o qual assenta tanto o ministério petrino do bispo de Roma, quanto o ministério apostólico dos demais bispos. Os bispos não são instrumentos do Papa nem funcionários sem responsabilidade própria. Foram instituídos pelo Espírito Santo e postos no lugar dos apóstolos, como autênticos pastores a serviço das comunidades de fé a eles confiado.

Pio IX defendeu publicamente o ensinamento do episcopado alemão. Na carta apostólica referida acima, declarou que o comunicado coletivo dos bispos alemães oferecia a pura doutrina católica e, conseqüentemente, do Concílio e da Sé de Roma.

Quem desejar fontes, poderá encontrá-las no Enchiridion Sybolorum, Definitionum et Declarationum (DS 3117- 36ª ed.). Entre os comentaristas e historiadores, é de fácil acesso Giusepe Alberigo, em História dos Concílios Ecumênicos ( Ed. Paulus, 1995, tradução do italiano).

A jurisdição do Bispo de Roma não é um poder concorrente contra o poder “ordinário, imediato e verdadeiramente episcopal” de cada bispo em sua diocese. O ministério petrino é subsidiário ao de cada bispo. O papa não é um “superbispo” ou um “bispo universal”, que pode considerar a terra inteira como sua diocese. O critério para atuar subsidiariamente em outras dioceses é o da necessitas Ecclesiae. O ministério petrino é um serviço à Igreja toda.

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Das promulgações do Concílio Vaticano I, não se pode deduzir jamais a soberania absoluta de um homem, mesmo sendo sucessor de Pedro. Nem se pode concluir que uma modalidade centralizada de exercício do primado seja a única compatível com o dogma.
A modalidade de exercício do ministério petrino, já se disse, deve ser medida segundo o critério da necessitas Ecclesiae, o mesmo critério seguido pelo Concílio Vaticano I.
Lembremos que João Paulo II animou os teólogos a estudarem outras formas do exercício do primado, assemelhadas à que vigorou no primeiro milênio. João Paulo II tinha plena consciência de que a necessitas Ecclesiae, o “bonum animarum”, deve ser o demarcador do exercício do primado (Cultura e Fé, n ° 102/2003).

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Cumpre anotar que a questão da relação entre o jurídico e o sacramental não se esboçou apenas no segundo milênio. Já se delineara nos primeiros séculos do primeiro milênio. Recorde-se que a Igreja Ocidental havia reconhecido, desde os começos, a validade do batismo mesmo quando administrado por egressos da comunidade católica. Distinguia entre a validade e a licitude.
A distinção criava um espaco entre o sacramental e o jurídico. Essa distinção não era reconhecida pelos orientais. Para sua concepção absolutamente sacramental da Igreja, tal distinção não servia para coisa alguma. Entretanto, na realidade, essa posição dos orientais os incapacitava teologicamente para compreender a situação dos que se separaram da grande Igreja.

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Ao longo do segundo milênio a separação se tornou cada vez mais funda, a despeito de tentativas de retorno à união. A despeito do Concílio de Florença (1439), o Oriente resistiu à união e começou a desenvolver a idéia de que a ruptura com Roma já começava a ter relação com a própria estrutura da Igreja.
Em contrapartida Roma mais se convencia de que a recusa ao primado, por parte dos ortodoxos, importava ruptura com o que fora recebido dos Doze, dos quais Pedro sempre fora sinal da unidade. A comunhão com a Igreja de Roma era o sinal da pertença à Igreja.
Impunha-se, então, uma interrogação decisiva. Que pertença à Igreja poderia haver lá, onde houvesse recusa à comunhão com a Sé de Pedro?
Foi a distinção entre validade e licitude da administração dos sacramentos que apontou caminhos para que o Ocidente continuasse a reconhecer, na denominada Ortodoxia, verdadeiros sacramentos.

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O Ocidente sempre marcou fortemente os textos neotestamentários relativos a Pedro, por isso mesmo se manteve, de fato, mais fiel à Tradição, nessa questão. O Oriente, entretanto, na Igreja Ortodoxa, não teve, a partir da ruptura, até hoje, explicação clara e adequada sobre o ministério petrino.

Falam em um primado de honra. Não me parece que o reconhecimento de um “primado de honra”, que algumas Igrejas ortodoxas atribuem ao Bispo de Roma, tenha consistência. O ministério de Pedro não é questão de honra. É serviço especial para o bem do Povo de Deus. O Senhor escolheu Simão, bar Jonas, não para honrar o pobre pescador da Galiléia, mas para ser Pedro, a pedra, a rocha da unidade, órgão, instrumento da promessa, feita à sua Igreja, de que as “portas do mal” não prevaleceriam. Escolheu para que fosse o servidor dos servidores do Povo de Deus.
Aqui, em ligeira digressão, recordo Newman, em sua caminhada a partir do Anglicanismo rumo à Católica. Após longo itinerário intelectual, ele se extasiou com a coerência lógica do princípio, segundo o qual Aquele que revelou a Verdade na história não podia privar os homens de sua proteção viva, que garantisse a transmissão viva e a interpretação fiel dela. Newman descobriu e cantou o “Nunc dimittis” do velho Simeão. Descobriu o dom do ministério de Pedro.

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O que se reconhece a favor do Ocidente, não significa que não tenha havido, nele, desbordamentos da tradição inicial sobre o serviço de Pedro, a ponto de a estrutura sacramental básica da Igreja parecer um tanto obscurecida.

Houve e há, na Católica, quem confunda desdobramentos históricos, provadamente históricos, com dado da Revelação. Em exemplo, podemos referir a nomeação dos bispos pelo Sucessor de Pedro. Essa prática foi adotada no Ocidente por exigência de situações históricas e por que assim postulava a “necessitas Ecclesiae”. Exigência do momento histórico é exigência transitória, não significa que outra forma de escolha de batizados para o múnus episcopal se descompasse da verdade revelada.
Urge, assim, se enfrente a questão de que a forma de exercício do ministério petrino é histórica e não “de fide”. Esse é um dos obstáculos sérios no caminho para a unidade.

A propósito, Herman Joseph Pottmeyer, membro da Comissão Teológica Internacional e professor emérito de Teologia Fundamental, pesquisador sério no solo e subsolo do Vaticano I (1870), fez intervenção muito oportuna no Simpósio do Conselho para a Unidade dos Cristãos, realizado em junho de 2003. Enfrentou a questão do primado e da infalibilidade com clareza e competência.

Expôs e interpretou as definições conciliares a partir das atas do Concílio e superou o maximalismo divulgado e acentuado no séc. XIX.
Marcou que o critério para o exercício do primado é a necessitas Ecclesiae. Histórico, portanto. Critério que ressai do próprio Concílio e que anula a explosividade da interpretação dos maximalistas, para os quais o primado se define à semelhança das monarquias absolutistas do passado. A respeito da posição correta, ensinada por Herman Joseph Pottmeyer, relembro que o número 102 de Cultura e Fé noticia mais amplamente a atuação daquele teólogo, no Conselho para a Unidade dos Cristãos.

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Na realidade, posições maximalistas do Ocidente ou do Oriente cancelam qualquer esperança da unidade buscada pelo movimento ecumênico. O maximalismo, como o minimalismo, obstaculizam os caminhos do retorno à unidade, na verdade e no amor fraterno.
Neste passo, vale anotar que a unidade da Igreja não é um objetivo político. Sua busca é um dever arrebatador, que não se cumpre pelos atalhos do compromisso político. Estamos no terreno da fé. Trata-se da verdade. A verdade não se negocia.
Também neste passo, cumpre lembrar que exigências em nome da verdade só podem ser consideradas ali onde a verdade está inequivocamente demonstrada. Não tem cabida pretender impor como verdade de fé o que, na realidade, é somente uma forma histórica com alguma vinculação à verdade.
Mas, se essa lembrança se impõe, mais fortemente se impõem a honestidade intelectual e a sinceridade do coração quando estão em pauta a força da verdade e a sua irrenunciabilidade.

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Importa marcar bem que o maximalismo não é risco somente do Ocidente.
Quando Igrejas orientais recusam qualquer conteúdo ao primado e ao ministério petrino e pretendem que as Igrejas do Ocidente esqueçam o Vaticano I, como condição para a unidade, assumem como verdade algo que elas mesmas construiram na história, após 1054, e nada tem com a verdade que ressai da Escritura e da Tradição dos Apóstolos e dos Pais da Igreja. Assumem, no caso, uma posição maximalista.

Não é de se pretender impor às Igrejas orientais outra forma do ministério de Pedro diferente daquela que vigorou no primeiro milênio para a Igreja una, santa, católica e apostólica. Isso muito bem viu João Paulo II. E também viu o teólogo Joseph Ratzinger, como se lê em Teologische Prinzipienlehre (München, 1982), fonte principal entre aquelas nas quais me abasteço e cujos ensinamentos repito, neste parágrafo, quase ad litteram. Mas também entendo não podem as Igrejas Ortodoxas, autocéfalas ou não, ignorar o ministério petrino que ressai da Escritura e da Tradição.

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Paulo VI reiteradamente demonstrou que o Ocidente não deve e não quer impor ao Oriente, como únicos, os caminhos meramente conjunturais que a Igreja latina seguiu.

Muito menos quer manter costumes anacrônicos que se colaram na Igreja de Roma. Manifestações rotineiras de poder, feíssimas, e impróprias hoje para evangelizar, como aquelas da tríplice coroa, da cadeira gestatória e do beija-mãos ou beija-pés. Tudo isso foi eliminado. Principalmente por Paulo VI, que aboliu a tríplice coroa e a cadeira gestatória. Os outros costumes anacrônicos já haviam sido deletados antes.

Vale recordar, aqui, aquele gesto de Paulo VI, quando acolheu o Metropolita Melitão, enviado por Demétrio I, Patriarca de Constantinopla. Lembram?
Foi em 1975, na comemoração dos dez anos do abraço entre Paulo VI e Atenágoras e o levantamento da excomunhões mútuas. Ao receber o Metropolita Melitão, representante de Demétrio I, então Patriarca Ecumênico, o Sucessor de Pedro ajoelhou-se e lhe beijou os pés. Demétrio I, ao saber do fato, no mesmo dia, tocado no mais fundo de sua alma, exclamou: Paulo VI superou o Papado! Igualou-se aos Pais da Igreja! Sabem o que significa um Patriarca, Titular da Sé de Constantinopla, igualar alguém aos Pais da Igreja?
O gesto do Sucessor de Pedro sacudiu o Oriente, naquele momento, convocou-o a reformular suas concepções sobre Roma, desenvolvidas e alimentadas a partir de 1054. E, sobretudo, após a invasão de 1204. Bendito seja Paulo VI, santo de Deus!

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Reitero. Penso que o Ocidente não deva postular do Oriente uma doutrina do primado diferente daquela que vigorou no tempo do primeiro milênio. De outra parte, ao Oriente cumpre cessar de apodar como herética a evolução havida na Igreja Ocidental durante o segundo milênio e até hoje. Clamam por isso a verdade objetiva dos fatos, a justiça, o amor fraterno.
O que se impõe é um ato de recíproca aceitação. E de reconhecimento mútuo, em uma catolicidade comum e nunca abandonada, como ensinava o teólogo J. Ratzinger, hoje Bento XVI.

Um ato assim implica conversão, auto-superação, renúncia a vaidades cultivadas com manto de virtudes, a velhos rancores e a modos superficiais de análises. Isso, de ambas as partes. Da parte do Ocidente, a Católica já demonstrou humildade, amor e senso de justiça, através de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. Jogou-se para a frente. Deu todos os passos necessários para romper os muros da vaidade, do orgulho, dos ressentimentos históricos, da descaridade e da racionalização. Da parte do Oriente cabe seguir os passos do grande Atenágoras, patriarca ecumênico de Constantinopla, na década de sessenta, e dos santos patriarcas que o sucederam.

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Força é sejam banidas, decididamente, corajosamente, formas diplomáticas de expressão, superficialmente laudatórias, grandiloqüentes, tão descabidas hoje que se tornam incompreensíveis ou simplesmente suspeitas de manobra política dos comandos. Quem vai entender, hoje, aqueles tratamentos protocolares que distanciam os irmãos? Impõe-se, como de ambas as partes se tem ouvido, que a relação seja realmente fraterna, sem poses, sem exterioridades e sem fórmulas laudatórias ocas, que não levam nunca a uma conclusão real.
A conversão de que se fala, aqui, entretanto, não é de costumes protocolares apenas. Aqui se fala de um processo espiritual, de uma metanóia, que não pode reduzir-se à esfera dos comandos. Deve ser pregada à totalidade da Igreja do Oeste e do Leste e por ela assumida e vivida na caridade e na verdade, no amor fraterno, na alegria de sermos a Grande Família de Deus, gerada pelo Sangue Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo.
É preciso que a redescoberta da unidade no plano teológico aconteça também na vida de todo o Povo de Deus. A Igreja toda deve ser preparada espiritualmente, de modo que um Novo Pentecostes aconteça e a paixão pela unidade, na diversidade de dons, lavre como incêndio.

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É curial que a afirmação da possibilidade teológica básica da união entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa não deve levar-nos a conclusões apressadas.
Devem ser criados espaços espirituais para o teologicamente possível, contemplando-se tudo sob o prisma do “urgente mandamento da unidade”. Unidade que não significa uniformidade.
Urge ter presente que não é a unidade que precisa ser justificada. São os que resistem à união que devem justificar sua recusa.
Mas como justificar separações? Fechando nossa inteligência e o nosso coração para os diferentes? Suspeitando e condenando a priori? Racionalizando orgulhos e vaidades a ponto de os termos por virtudes?
Prognósticos teóricos de pouco valem, a não ser que sejam postos como tarefa a enfrentar e realizar, na verdade, na justiça e no amor.

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Para nos tornarmos agentes da unidade, com alegria e eficácia, conviria assimilássemos as cartas apostólicas “ORIENTALE LUMEN” e “UT UNUM SINT”, de João Paulo II (1995). E também seria muito oportuno lermos e assimilarmos os conteúdos oferecidos pela CNBB, no opúsculo sobre a prática do ecumenismo, editado por Edições Loyola.
Se nos convertermos e nos abrirmos, por graça, a uma viva consciência de Igreja, ao poder do Espírito Santo, dimensões mais vastas do que os estreitos limites paroquiais e diocesanos se desvelarão. Perceberemos a vastidão de beleza pluriforme da Casa do Senhor, lugar onde, já aqui na terra, a reunião de todos na Trindade começa. Reunião, comunhão, para a qual fomos criados. Povo reunido, na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. “De unitate Patris, Filii et Spiritus Sancti plebs adunata”, como queria Cipriano de Antioquia, bispo, Padre da Igreja, apaixonado pela unidade, mártir do ano 258. Como, repetindo os Pais da Igreja, proclamava Henri de Lubac com insistência, em “Meditation sur l'Eglise”, lá pela metade do séc. XX.

Com essa percepção, os nossos limites estreitos se implodem. Encontramo-nos, então, na vastidão do universo da graça. Na única comunidade verdadeiramente aberta para todos quantos buscam a verdade, a justiça, o amor, a alegria da identidade do homem. Ali, onde, libertos dos limites do geográfico, do étnico, do sociológico e do político, fazemos a experiência daquela alegria de sermos todos um. Todos irmãos no Senhor nosso Deus. Todos com um só coração e uma só alma.

Miserere nobis. Domine, secundum magnam misericordiam tuam.
Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

BENTO XVI - APONTAMENTOS

Cultura e Fé, n° 109/2005
Eno Dias de Castro
edcrs@uol.com.br

BENTO XVI – APONTAMENTOS



Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade (Hb 9,10).
O núcleo da vida do ducentésimo sexagésimo quinto sucessor de Pedro se define nesse texto da Escritura. Nele se encontra a narração interior de sua vida.
Tive essa percepção quando o li pela primeira vez, há algumas décadas, em “Teoría de los Prncipios Teológicos” (Ed. Herder, Barcelona). E, depois, essa percepção voltava e voltava, sempre que o estudava em obras teológicas, artigos ou entrevistas. Toda a atividade dele me parecia animada por uma densa relação interior com o Senhor Jesus Cristo, vivo e atuante na Igreja. Ele me pareceu sempre um homem que conhece o Senhor a partir de dentro.
Confirmaram-me essa impressão todos os testemunhos que ouvi sobre ele. Testemunhos de leigos, como Vittorio Messori, escritor e jornalista, que o entrevistou longa e sagazmente, já no descambar do séc. XX. De membros da hierarquia, como o arcebispo de Havana, Cardeal Jaime Ortega, que o conhece de perto e há dezenas de anos.

Messori testemunhou a vida simples e humilde do então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Diz que observou pessoalmente sua vida enraizada na oração. E os colaboradores de trabalho lhe atestaram como Ratzinger cimenta toda a atividade em um cristianismo vivido como serviço ao povo de Deus. (Rapporto sulla Fede, 1985).

Ortega prevê que o novo sucessor de Pedro prestará serviço inestimável ao Povo de Deus, pela clareza de suas posições e pela firmeza de suas orientações, contra o nihilismo cultural e moral e contra o relativismo desorientador da vida. Diz que pela sua constante preocupação com os povos sofridos, por sua paixão pela verdade e pela justiça dosada pela misericórdia, será uma referência moral para a humanidade. Acentua também que ressai nele a capacidade de ouvir com paciência e respeito a todas as pessoas, sem distinção alguma (ZENIT – Entrevista).

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Bem antes do conclave que o elegeria, já me animava a esperança de que fosse Ratzinger o sucessor de João Paulo, mas não podia esperar sinais daquilo que dele pensava, já nos primeiros momentos após a eleição. Não esperava, mas ocorreram.




Lembram-se? Foi na homilia da Celebração da Eucaristia, que marcou o início do ministério petrino a que fora chamado. Temos todos na memória aquelas palavras definidoras de uma vida: “Meu verdadeiro plano é não fazer a minha vontade, não amarrar-me às minhas próprias idéias, mas pôr-me, juntamente com toda a Igreja, à escuta da Palavra e da Vontade do Senhor e deixar-me conduzir por Ele, de modo que seja Ele mesmo quem conduza a Igreja nesta hora de nossa história”.
O novo Bispo de Roma, que se apresentava assim para seus diocesanos e para o mundo inteiro é o mesmo bispo que, poucos dias antes, marcou o coração de milhões, ao despedir-se de João Paulo II em nome da Igreja, dizendo: “Deixaste-nos, Padre Santo. Por nós te consumiste. Nesta hora, para ti gloriosa, para nós dolorosa, sentimo-nos abandonados. Mas tu nos tomas pela mão e nos guias com tua mão que nestes meses se fez em ti palavra. Obrigado, Padre Santo”.

Sim. Esse é o homem que o Senhor colocou na cadeira de Pedro. Para que falar mais?
Pediram-me, entretanto, que, como leigo, escrevesse alguns apontamentos sobre o cardeal que se tornou Bento XVI. É o que tento agora.

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Penso que Joseph Ratzinger é um homem que ainda bem jovem fez a experiência de Deus. Essa experiência o marcou e o conduziu à consagração da vida ao serviço do Povo de Deus.
Ele vive a certeza da Graça do Pneuma Hágion no seio da Igreja. Na realidade, encontra essa certeza na Eucaristia, obra do Pneuma. Ele vive a fé na “Eucaristia, vida da Igreja”.
Lembre-se a mensagem aos cardeais, na manhã do dia vinte de abril: “ (...) De maneira muito significativa, este meu ministério começa quando a Igreja está a viver o ano especial dedicado à Eucaristia. Como deixar de acolher esta coincidência providencial, como um elemento que deve caracterizar o ministério ao qual fui chamado?
Mais adiante, na mesma mensagem, proclama que da plena comunhão com o Senhor na Eucaristia “nascem todos os outros elementos da vida da Igreja. Em primeiro lugar, a comunhão entre todos os fiéis, o compromisso de anunciar e testemunhar o Evangelho, o ardor da caridade para com todos. Especialmente, para com os mais pobres e pequenos.
Foi com essa convicção que, ainda na mesma oportunidade, fez apelo a todos os bispos e ministros ordenados, para que “exprimam de modo corajoso e claro a fé na presença real do Senhor” na Eucaristia. Sobretudo durante as celebrações litúrgicas.




Um momento anterior que retive foi aquele da apresentação do eleito, urbi et orbi, pelo Cardeal Camerlengo. O momento em que, já como Bento XVI, invocou a Mãe Santíssima.
Fui conferir onde, há tempos, tinha encontrado manifestação dele sobre a importância da intercessão de Maria Santíssima para a Igreja e para a humanidade.
Logo encontrei um. Estava lá, em “Rapporto sulla fede”, entrevista com Vittorio Messori, realizada em 15 de agosto de 1984.
Pela metade da conversação, Ratzinger foi questionado sobre a possibilidade de superação da crise de fé, na velha Europa. Sem vacilar, assinalou que um dos remédios mais eficazes levava um nome curto: Maria.
Mais uma vez, resposta sem rodeios. Não ensaiou, primeiro, reflexões teológicas. Não impostou ressalvas. Simplesmente apontou o caminho em direção à Mãe Bendita do Senhor. Como algo espontâneo que emergisse de seu coração, sem censura teológica prévia.
A volta àquele nome, obscurecido por alguns segmentos católicos após o Vaticano II, pareceu um imperativo para o teólogo Joseph Ratzinger, então já Bispo e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Apontou o caminho e agregou: “se o lugar ocupado por Nossa Senhora foi sempre essencial para o equilíbrio da fé, reencontrar hoje tal lugar é urgente, tão urgente como em poucas outras épocas da história da Igreja”.

* * *

Dizer que Ratzinger sempre se distinguiu pela inteligência privilegiada e pela condição de teólogo agudo é lugar comum. Os que o aplaudem referem sempre essas qualidades. Os que o criticam não as negam. Munique, Tübingen, Regensburg, cidades onde desenvolveu magistério universitário, e Roma do Vaticano II, onde atuou como assessor de bispos, atestaram esses dons naturais.
Para mim, importam, aqui, três aspectos que nele encontrei: espiritualidade funda, viva e simples; reflexão teológica lúcida, cimentada na tradição apostólica, não no próprio ego; constante preocupação com os problemas do homem e das comunidades humanas. Esses aspectos o distinguiam e mostravam, para mim, donde vertiam sua teologia e seu testemunho de vida.
Como apontei ao início, a fonte estava ali. Na busca constante da realização do plano de Deus. Na vida de comunhão com o Senhor. No amor misericordioso para com todos os seres humanos oprimidos pelo pecado, pela mentira, pela injustiça e pela exclusão imposta pela cultura da opulência e da funcionalidade. Muito ao contrário do que repetem em coro três ou quatro detratores profissionais, usando a mídia como caixa de ressonância. Ratzinger sempre denunciou a cultura da funcionalidade, do consumismo, da dominação e da opressão, “marca das classes abastadas e poderosas”. E fez isso com a força de sua vida ancorada no Senhor. Por isso mesmo, para ele, “Ecclesia semper reformanda est”. Quer a Igreja reformando-se sempre, para que nunca perca a vitalidade espiritual e não cesse de testemunhar.

* * *

Ao lê-lo e ouvi-lo, notamos que sempre volta a sinalar a urgência de vivermos e testemunharmos nossa adesão ao Senhor Jesus Cristo, no qual se descobre a fonte do amor, da justiça, da verdade e da alegria.
Anote-se que, embora seja um homem de ação, nunca se deixou enredar na teia do ativismo dominante, para o qual o homem é um fazedor de coisas ou não é.
Não se deixou ajoujar pelos doutrinadores do ativismo que apresentam a Igreja como um povo atarefado, empenhado em um programa de ação com “resultados” sociais, políticos e culturais.
Não resvala pelas ladeiras que levam à redução do cristianismo à ideologia machista do fazer. Muito menos à ideologia infantil do número, da imagem, da vitrine, do aplauso. A ideologia machista do fazer é identificada por ele como aquela que “apresenta um projeto de Igreja em que não há mais lugar para a experiência mística. Experiência que ele considera o “cume da vida religiosa que, não por acaso, esteve entre as glórias e riquezas a todos oferecidas, com milenária constância e abundância, mais por mulheres do que por homens” (Rapporto). Por valorizar o testemunho de solidariedade, de renúncia, de serviço e de alegria dessas mulheres e homens santos, formados na oração, ele os aponta como exemplo de particular atualidade para mudar o mundo.

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Seguidor do Senhor, não se abate com as caricaturas espalhadas pela mídia norte-americana nem com a mentira e a injúria distiladas por diversos outros segmentos da mídia internacional. Reza por todos. Perdoa-os no coração. Prefere cultivar a alegria do perdão. Coerente com o que sempre ensinou, reitera para nós: A Igreja nasceu do perdão. Precisamos da alegria de perdoar e de sermos perdoados. O perdão e sua realização, em nós, pela via da penitência e do seguimento de Cristo é, antes do mais, o centro pessoal de toda renovação (COMPREENDER A IGREJA HOJE – Ed. Vozes).

A alegria cristã é um tema ao qual retorna com freqüência.
Não se pense em “alegrias” alienantes. Não se confunda alegria com a fruição pela fruição, com “interesses privados”. Lembro que, inquirido por V. Messori, Ratzinger classificou de “infernal a cultura do Ocidente quando persuade as pessoas de que o único objetivo da vida são o prazer e o interesse privado”. Ele denunciava com veemência a cultura do funcional, do “tirar vantagem em tudo”, imposta pelo mundo do mercado, do capital e do lucro.
O tema da alegria é, para Ratzinger, aquele que brota da experiência que só o Senhor nosso Deus pode dar. Refere-se à alegria do acontecer do Reino, que compele à solidariedade e ao serviço dos irmãos. Sobretudo, ao serviço dos irmãos mais pobres e marginalizados. Trata-se da alegria interior que é experiência do amor e da paz. Daquela paz apaixonada e ativa que confere força para assumir no fundo do coração todo o sofrimento do mundo.
* * *

“A Igreja está viva e é jovem!” Essa exclamação, da primeira homilia, é de uma espontaneidade plena e desvela, mais uma vez, a vida interior e a visão eclesial de Bento XVI. Reflete a convicção de que a alma, o coração do Povo de Deus jamais se fossiliza e jamais morre. A Fundação do Senhor é animada pela juventude eterna do Espírito Santo de Graça e Santidade. As fraquezas e traições de alguns ou de muitos de seus filhos, em dois mil anos de história, não conseguiram matar-lhe a vida e a juventude.

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Joseph Ratzinger é homem descomplicado. Homem de coração simples, alegre e bem humorado. Nada do “Panzer-Kardinal”, imaginado por articulistas que nunca leram uma linha sequer de suas obras e dele só têm o que ouviram de três ou quatro teólogos neo-liberais. Teólogos aos quais declarou que não lhes assiste o direito de se proclamarem professores de teologia católica, quando suas teses e seu agir contrastam com a fé católica.
Ridícula é a imaginação dos que pretendem passar a idéia de um hierarca com o título ultrapassado de purpurado ou com o título anacrônico de príncipe. Pior ainda quando o desenham como “príncipe acompanhado de seu séquito”. – Pela divulgação dessa imagem anacronizante são inocentemente responsáveis também jornais e algumas revistas católicas.
Quanto a Ratzinger, todos sabem que ele andava sozinho, de “clergiman” e palitó preto. Sem séquitos e sem púrpura. Não são poucos os romanos que o viam dirigindo seu pequeno automóvel pelas ruas de Roma.
Seus ex-alunos atestam que, no trato pessoal, nada de julgador havia nele. Nada da figura do inquisidor implacável.
Messori, que o observou e o entrevistou longamente, conta que o viu por vezes preocupado, mas que também muitas vezes o viu “rir à vontade”, comentando “tiradas curiosas e divertidas”. Acentua que seu senso de humor contrasta com qualquer esquema de inquisidor. Como contrasta com a imagem de inquisidor “sua capacidade de ouvir, sua disponibilidade em ser interrompido por perguntas e a prontidão em respondê-las todas com extrema franqueza, deixando que o gravador continue a girar” (Rapporto sulla fede).



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Educado, mas sem rodeios, impressiona os que tratam com ele, pela postura acolhedora e pelas afirmações e respostas claras, diretas, sem subterfúgios.
Sem rompantes autoritários, mas de fala e ações diretas, é adversário declarado e firme de outra carga destes tempos, a burocracia.
Note-se que sempre criticou a burocracia, a criação e recriação de planos em demasia, a multiplicação de organizações e departamentos burocráticos. E a crítica procede.
A burocracia esclerosa os condutos da graça e impede circule por eles a seiva interior. Aquela seiva que mantém a juventude da Igreja-mistério e lhe irriga a vida institucional, renovando-a, reformando-a. (Igreja-mistério e Igreja-instituição não são duas Igrejas. São duas faces da mesma realidade, Fundação do Senhor).
A força, a vida interior, a graça do Paráclito, que é a vida do mistério da Igreja, impede o envelhecimento e a morte de suas estruturas, compelindo-as a se reformarem continuamente. Lenta, mas continuamente.
É bem aquilo de Péguy: “Quando se diz que a Igreja recebeu promessas eternas, é preciso entender rigorosamente que ela recebeu a promessa de jamais sucumbir sob seu envelhecimento, sob seu endurecimento, (...). De não sucumbir jamais sob a rigidez (...) de sua burocracia” (Note Conjointe).

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O crachá de “conservador”, com desenho pejorativo, pelo qual querem identificá-lo, é uma sandice. Ratzinger é um homem aberto à mudança, a reformas necessárias, em tudo que seja mudável e reformável. Mais. É um promotor da atualização de tudo que precisa ser atualizado.
Quem o leu sabe disso. Um exemplo é o ensinamento de que o modo do exercício do múnus petrino é histórico e, portanto, mutável. No detalhe do exemplo: o exercício do ministério de Pedro não precisa ser centralizador como pretendem os maximalistas, os que vêem o ministério petrino como um poder monárquico absoluto. A concepção maximalista não se equaciona com a estrutura eclesial paleocristã. Os maximalistas despercebem que o ministério petrino é um serviço, instituído com vista à “necessitas Ecclesiae”.

Aquele que se torna Pedro hoje, não é dono “daquilo que foi recebido na origem”. É guarda e administrador. Não tem poder algum para cancelar ou alterar o que foi recebido dos Doze, como fundamental. Joseph Ratzinger repetia isso com freqüência. Suas formulações eram claras: “A Igreja não pode simplesmente fazer o que quer. O Papa não é um monarca absoluto. Deve obedecer à Palavra transmitida e à Tradição Apostólica, como todos os fiéis, e zelar por essa obediência”(Entrevista, 30DIAS, n. 1/1994, ps. 60/72.).

Merece por isso o crachá de “conservador”? Que sentido tem, dentro da Igreja, as categorias políticas “conservador” e “progressista”?
Condenar o assassinato de criancinhas no seio materno é ser “conservador”? Então é “conservador” também quem condena a violação dos direitos humanos.
Mas, “ele nega o direito da mulher ao ministério ordenado”. Tal afirmação revela ignorância completa sobre a matéria. Quem diz isso dessabe o que seja o ministério ordenado.
Direito ao ministério ordenado? Esse direito ninguém tem. Nem a mulher nem o homem. Ninguém.

O ministério ordenado não é um direito nem um poder. O Sacramento da Ordem, como ensinou o teólogo Joseph Ratzinger, não é uma atribuição de poder, mas uma expropriação do próprio “eu” em favor dAquele em cujo nome deve o ministro falar e agir. E ali onde a responsabilidade é maior, maior é a expropriação de seu “eu”, de modo que ninguém pode ser escravo do outro. Então, ali reina o Senhor, no qual acontece a liberdade da paz e da alegria.

O Sacramento da Ordem é dom de Deus para seu Povo. Um dos sinais pelos quais o Senhor cumpre a promessa de permanecer conosco até os tempos do fim. É por esse dom que se perpetua no tempo a presença tópica, localizável, do Senhor. No altar e no sacrário. Sob a humilde, mas concreta aparência. O ministério ordenado foi instituído em ordem à Eucaristia. Centro e força da “plebs adunata”, peregrinante para a Casa do Pai.
Reitero. Dom, gratuidade pura, ninguém tem direito a esse ministério. Nem o homem nem a mulher. Ninguém tem direito de exigir do Senhor que lhe outorgue o ministério sagrado de “fazer a Eucaristia”. O Senhor convoca a quem quer. E convoca para que o convocado se exproprie de si mesmo e sirva a seus irmãos. Não o dá para a “glória” de um indivíduo, de uma classe, de uma corporação ou de um dos termos do binômio “vir et mulier”. Muito menos para autorizar dominação. Se as duas partes da espécie constituem um binômio, constituem-no como binômio de reciprocidade. Não de antinomia ou de dependência que subjuga e algema. Desenha-se um binômio de interdependência recíproca, para a realização de um destino único. Idêntico. De um projeto de felicidade para todos. Já escrevi isso, que aprendi de Ratzinger, em outro lugar (Cultura e Fé, n. 60).
Ao escolher doze homens, varões, para testemunhas diretas e pilares de sua Igreja, dando-lhes o mandamento do “Fazei isto em memória de mim”, o Senhor agiu como Senhor e Deus. Como Deus que é Amor e sabe o que é melhor e o que convém. À Igreja só cabe a conduta obediencial. Pedro não pode mudar o que Senhor fez e ensinou.



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Parte da mídia européia, secularista e relativista, exportou comentários beócios, aos montes, para o terceiro mundo, antes e depois do conclave. Ignora a agudez da inteligência e o senso crítico do mundo economicamente dominado. Tratam tudo com as medidas do mercado e pensam que, por aqui, todos são privados da capacidade de pensar e de indignar-se, por força da desnutrição.

Falam do Bispo de Roma como se ele fosse um “maker”. Falam que a Igreja está perdendo clientes por falta de marketing liberalizante. O Bispo de Roma não é um “maker”. Não é um empresário. Nem a Igreja é uma empresa, que age e muda sob teorias de marketing, “para satisfazer consumidores” e “captar clientes” ou “sócios”.
É verdade que encontram, aqui, alguns simpatizantes inocentes. Mas estes, por mais que queiram transpor para dentro da Igreja o pensamento e a linguagem do mercado, não conseguirão. O Espírito Santo Paráclito fará com que os Bispos se unam para deter a invasão desfiguradora da identidade eclesial.
Os que tentam transplantar o conceito de qualidade total para dentro da Igreja, em função de uma pastoral que “agrade o cliente”, parece que já esqueceram a identidade da própria Igreja, sua causa, seu sentido e seu balizamento. Importam categorias do mundo da produção e do consumo, do econômico-financeiro do chamado primeiro mundo, numa superficialidade e vacuidade que causam mal-estar. Seus anúncios e propagandas, aos mais modernos estilos de atrair e de vender, causam dó, quando não repugnância espessa. Aí está o resultado da cultura da funcionalidade denunciada por Ratzinger freqüentemente.

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No que tange à busca da unidade, Ratzinger é dos que mais lucidamente apontam os caminhos possíveis, para realizá-la, dentro da verdade. Ele caracteriza a busca da unidade como um dever arrebatador do Sucessor de Pedro. Fará tudo o que for preciso para facilitar e recriar a unidade, sem negaças e sem falsidades. Ele é um homem da verdade. A unidade da Igreja não se constrói com acordos políticos. A fidelidade à Traditio Apostolica, ao Depositum Fidei, em uma visão ampla e atualizada das culturas e da história, fruto da oração e do estudo crítico, respeitoso e misericordioso, marca-lhe a atuação. Foi isso que me instigou sempre à leitura de seus livros, de suas conferências, de suas entrevistas e me levou a buscar nele as sínteses atualizadas das questões filosóficas e teológicas mais candentes. Ele, para mim, é aquilo que Inácio de Antioquia e Policarpo, Irineu e Atanásio, Ambrósio e Agostinho foram no seu tempo e, sob os aspectos fundamentais da fé, ainda são hoje.

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Chega de registros. Podemos conhecer melhor Bento XVI por aquilo que ele viveu intensamente como padre e bispo. Isso se encontra compendiado em um texto, no qual traçou a identidade conferida pelo Sacramento da Ordem ao ministro ordenado. O que vale para o ministro ordenado, aplica-se, no caso, ao bispo chamado ao ministério petrino.


Recordo e retranscrevo o texto inteiro:

– O sacerdócio do Novo Testamento instaurado com os Apóstolos tem uma estrutura inteiramente cristológica e significa inserção (específica) do homem na missão de Jesus Cristo. Uma ligação pessoal única com o Senhor constitui a essência e fundamento para o ministério sacerdotal. Daí depende tudo o mais. Nisto consiste toda a preparação para o sacerdócio e qualquer formação subseqüente.
O sacerdote deve ser um homem que conhece Jesus a partir de dentro. Homem que se encontrou com Ele e aprendeu a amá-lO. Por isto, o sacerdote deve ser, antes de tudo, um homem de oração. Sem este forte conteúdo espiritual, ele não é capaz de perseverar em seu ministério. Deve aprender também com o Senhor que o importante em sua vida não é sua auto-realização nem o sucesso. Deve aprender a não construir uma vida interessante e agradável para si. A não criar uma comunidade de admiradores e seguidores para si, mas a trabalhar para o Senhor, centro único de toda a pastoral.
A isto se opõe a tendência natural de nossa existência, mas com o tempo se perceberá que esta perda de importância do “eu” é que nos liberta verdadeiramente.
Quem trabalha para o Senhor sabe que é sempre um outro que semeia e um outro que colhe. Não precisa questionar-se a todo o momento. Qualquer que seja o resultado, ele o entrega ao Senhor nosso Deus e faz a sua parte despreocupadamente, livre e jubiloso, porque sua vida está integrada numa causa imensa.
Se os sacerdotes, hoje, se sentem extenuados, fatigados e frustrados, o motivo é uma busca crispada de eficiência. A fé se tornou um fardo pesado, difícil de arrastar, quando devia ser asas que nos transportam.
Da íntima comunhão com o Senhor brota a participação em seu amor pelos homens e em seu desejo de salvá-los e ajudá-los. Hoje muitos sacerdotes duvidam se fazemos verdadeiramente bem às pessoas quando as guiamos para a fé, ou se, deste modo, não estamos tornando pesada a sua vida..
Quando a fé é vista como um peso adicional que dificulta a vida, ela não pode tornar alguém feliz. Então, servir à causa da fé já não traz alegria. Quem, entretanto, descobriu o Senhor a partir de dentro, quem O conhece de primeira mão, descobre a Força renovadora que confere sentido a todas as coisas e torna grandioso até o que é difícil. Somente uma alegria como esta, por causa do Senhor, é capaz de irrigar de alegria o ministério e torná-lo vivificante.
Quem ama deseja conhecer. Por isto, do verdadeiro amor do Senhor nasce o desejo de conhecê-lo cada vez melhor. A ele e a tudo o que Lhe pertence. Como o Senhor jamais se acha só, mas veio para unir a todos em seu corpo, acrescenta-se mais um componente (da identidade do sacerdote): o amor a sua Igreja.
Não procuramos um Cristo inventado por nós mesmos. Somente na verdadeira Igreja é que encontramos o Cristo verdadeiro. E, mais uma vez, na prontidão em amar a Igreja, em viver com ela e servir ao Senhor dentro dela, é que se revelam a profundidade e a seriedade da relação com o próprio Senhor. – (COMPREENDER A IGREJA HOJE, p. 72, Vozes, 1992. Podemos encontrar equivalentes em TEORIA DE LOS PRINCIPIOS TEOLÓGICOS e CURSO DE TEOLOGIA DOGMÁTICA, ESCATOLOGIA, J. Ratzinger, Herder, Barcelona).

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Pelo texto reproduzido se conhece quem é o ducentésimo sexagésimo quinto Sucessor de Pedro, sinal da unidade do Colegiado dos Bispos. Nele se verifica, realmente, o versículo da Escritura citado ao início destes apontamentos.
O texto espelha Bento XVI muito melhor do que todos os registros por mim feitos.
“Gloria in excelsis Deo! Et pax hominibus!”

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Invoco o grande momento. Era 19 de abril deste ano de 2005.
“Annuntio vobis gaudium magnum; habemus Papam: Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum, Dominum Josephum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Ratzinger qui sibi nomen imposuit Benedictum XVI”.

Com Bento XVI a alegria se restabelece no coração católico, após a tristeza com a morte de João Paulo. Por um e pelo outro, entoa o Povo de Deus o hino da gratidão e da esperança. “Minha alma engrandece o Senhor. Meu espírito exulta em Deus, meu Salvador” (Lc 1,46 e ss). Gratidão imensa para com o Espírito Santo de Deus, o Paráclito, que conduz a Fundação do Senhor rumo à Casa do Pai, à Pátria Trinitária.
Brota espontânea do coração católico a doxologia do Espírito Santo de Graça, do Ruah da Verdade, do Pneuma da Vida, Sopro que anima, aquece e rejuvenesce a Igreja..

Miserere nobis, Domine, secundum magnam misericordiam tuam.
Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix.

terça-feira, 29 de julho de 2008

TU ÉS PEDRO
Publicado em Cultura e Fé

Eno Dias de Castro


O primado de Pedro ressai como um fato inarredável à simples leitura dos escritos neotestamentários. Nenhuma especialização se requer para apreendê-lo. Suscitam-se questões apenas quanto ao conteúdo dessa primazia e sua projeção no tempo. E mais veementemente, no que diz com a identificação local dessa projeção.

Relembro a evidência do fato e faço registros relativos às questões que ainda se levantam.

* * *

O fato do primado se desenha nítido no conjunto neotestamentário.

Começando com Paulo, encontra-se em 1Cor 15, 3-6, a reprodução de profissão de fé vinda das origens. Paulo seguramente a colheu na fonte que vertia dos Doze.

Naquele “Credo” de valor especial pelo arcaísmo, professa-se o que é decisivo para a fé: a ressurreição do Senhor. E Paulo lhe sinala o fundamento histórico, invocando testemunhas.

O texto:

“Antes de tudo vos ensinei aquilo que eu mesmo recebi: ‘Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Foi visto por Cefas e depois pelos Doze. A seguir foi visto por mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, dos quais muitos ainda vivem”.

“Foi visto”, recorda Paulo. A forma verbal usada é “ôphté”, aoristo passivo do verbo grego “horáo” (“horômai”), como se lê nas edições críticas. Significa que foi visto realmente, com os olhos, fisicamente. E foi visto, em primeiro lugar, por Cefas, a “Rocha”. Depois, pelos Onze e por centenas de testemunhas, de uma só vez. Testemunhas que ainda podiam ser inquiridas, pois muitas ainda viviam, quando remeteu a carta. Paulo acentua que a fé na ressurreição se ancorava no fato. Não em fantasia.

Sabe-se quanto em Paulo a Ressurreição era decisiva para a fé e para o anúncio. Lembra aos de Corinto o “Credo” da origem, porque nele está inscrito o dado fundante da fé. E acrescenta sua radicação em uma experiência empírica do Ressuscitado, para lhe assinar o fundamento histórico.

Poderia ter consignado apenas o testemunho do Colegiado Apostólico. Destaca Pedro, porque o Senhor o destacara, revelando-se primeiro a ele. Pedro era a rocha da confirmação e da unidade. A Pedro cabia a credibilidade do primado.

Ainda recorrendo a Paulo, tem-se, na Carta aos Gálatas, comunicação que desvela reconhecimento da posição primacial de Pedro.

“Fui a Jerusalém para ver Pedro e permaneci junto a ele quinze dias” (Gl l,18).

“Historésai Kephan”, diz o texto grego, que a Vulgata traduz por “videre Petrum”, ver Pedro. A tradução se conota de um reconhecimento singular. Da necessidade interior de conhecer, pessoalmente, aquele que o Senhor designara entre os Doze, como traço de união e de confirmação. Assim entendeu Jerônimo. Mas há mais no verbo grego de Paulo. “Historésai” sinaliza mais. É buscar, perguntar, informar-se, contar, descrever, “abrir o coração”. E Paulo, escrevendo ou ditando em grego, conserva o termo aramaico para denominar Pedro. Paulo sublinha que Pedro é Cefas, a “Pedra”, a “Rocha” da promessa.

Passando aos demais escritos do Novo Testamento, o primado petrino se demarca definitivamente como um fato inafastável.

Lucas (22,32) nos narra os últimos avisos do Senhor antes da morte. É um alertamento solene. Os Apóstolos haveriam de ser “joeirados” por Satanás. Mas não menos solene é a esperança, o mandato que como esperança se outorga a Pedro.
O Senhor garante e determina:
“Eu roguei por ti para que a tua fé não falte. Tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos”.
É de notar, desde já, que aí não está somente o fato do primado, mas também o traço fundo de seu conteúdo. “Confirmar os irmãos” será missão de Pedro.

João, de outro passo, atesta a ratificação daquele mandato, após a Ressurreição. Testemunha que o Senhor torna pública a conversão de Pedro e lhe ratifica o primado.
Os termos são induvidosos:
“Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes? (...) Senhor, Tu sabes que eu Te amo (...) Apascenta meus cordeiros (...) Apascenta minhas ovelhas” (Jo 21,15-17).
A ratificação flui com toda a espessura que o verbo “apascentar” possuía naquele tempo e naquele momento. Espessura, densidade que carregaria consigo pelos séculos.
Pedro, em sua fragilidade, recebe um múnus que só pela força da promessa do Senhor poderia desempenhar. Uma missão que lhe transcende a vida. Na verdade, um dom à Igreja toda e para sempre. Um serviço que é doação até ao sangue.
Atentando bem, vê-se, ainda em João, que, no instante mesmo da apresentação de Pedro ao Senhor, já se lhe preanuncia a missão: “Fixando nele o olhar , o Senhor disse: ‘Tu és Simão, filho de Jonas. Cefas será o teu nome” (Jo l,42).

Igualmente, pelos sinóticos e pelos Atos, apreende-se sem esforço a posição de primeiro entre os iguais conferida a Pedro para servir a todos.

Nos sinóticos é sempre Pedro quem toma a palavra para se dirigir ao Senhor em nome dos Doze. A ponto de Marcos e Lucas identificarem os demais Apóstolos como os “companheiros” de Pedro (Mc 1,36; Lc 6,14-16). Mateus ao elencar os Doze assinala intencionalmente que Simão é o “protos”: “O primeiro é Simão, que se chama Pedro” (Mt 10,2). Como também Marcos e Lucas o fazem (Mc 13,16; Lc 6,14).

Nos Atos, a posição única de Pedro emerge reiteradamente. Desde a eleição de Matias para o lugar de Judas (1,15-26). Neles, identifica-se o Colégio Apostólico como “Pedro e os Onze” ou “Pedro e os outros” (1,13; 2,37). Apresentam Pedro como a voz de todos: “Pedro, de pé com os Onze ergueu a voz” (2,14). Informam que os prodígios mais marcantes, após Pentecostes, aconteceram por intermédio de Pedro (3, 1-6; 9,36). Contam que foi Pedro quem abriu a Igreja aos outros povos (10,1-8; 44,48).

Na realidade, é impossível ler a Escritura do Testamento Novo sem tomar conhecimento do fato da primazia de Pedro.

* * *

O conteúdo do primado.

Evidenciado que o primado de Pedro permeia o conjunto neotestamentário, impõe-se a conseqüência: a perícope clássica de Mateus (16,17-19) não constitui um dado solitário, como alguns pretendiam, para impugná-la como acréscimo.
Assim, sem margem a dúvidas, podemos recorrer ao texto de Mateus, para detectar o conteúdo do primado. O texto desvela, por si mesmo, esse conteúdo.
Tendo ido para as bandas de Cesaréia, o Senhor interroga os Doze sobre quem pensam que Ele seja.

Pedro responde e o Senhor proclama:

“Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelaram, mas o Pai que está nos Céus. E Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha a Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus. Tudo o que ligares na terra será ligado no Céus. Tudo o que desligares na terra será desligado nos Céus” (Mt 16,17-19).

O caráter da proclamação, em formulação tipicamente aramaica, como ensinam os tratadistas, confere certeza da sua origem. Até mesmo para os que recusam as conseqüências da primazia petrina. Nem Harnack e Bultmann desreconheceram sua radicação na pregação primitiva de Jerusalém.
Pelo que os lingüistas atestam, a estrutura aramaica da perícope é tão espessa que resiste a todas as traduções. Ressoam, ali, sobre Pedro, as próprias palavras pronunciadas pelo Senhor. “Ipsissima verba Domini”. As próprias palavras da “promessa”, cuja eficácia nada pode destruir. Nem mesmo a fragilidade do Apóstolo e dos que viriam a sucedê-lo.

Na realidade, nossa segurança não decorre do reconhecimento dos especialistas ou dos que se dizem “insiders”. A autenticidade da “promessa” e da outorga nós acolhemos por graça. Pela graça da fé batismal. Por isso, não nos impressionam teorias sem raízes, que tentam infirmar o texto de Mateus ou impugnar-lhe algum termo, como o faziam com a palavra “ekklesia”.
Para quem lê a Escritura, na fé da Igreja, a palavra é válida porque válida é a Escritura. E a Escritura é válida porque integra o “cânon” assegurado pela fé da Igreja-testemunha.

Nossa adesão não provém de hipóteses exegéticas. Quem conhece, ainda que pouco, os debates dos exegetas, sabe quão efêmeras são suas teorias quando sustentadas contra a Tradição da Fundação do Senhor. Mais cedo ou mais tarde, os pesquisadores fazem descobertas que implodem teorizações desradicadas “daquilo que foi recebido” na origem. Lembro que, ainda há bem pouco, a descoberta dos papiros 7Q4 e 7Q5 abalou toda a arquitetura exegética que negava a autenticidade das Cartas Pastorais de Paulo e recusava a datação antiga dos Evangelhos Sinóticos. O ensino bimilenar da Igreja foi apoiado pela papirologia, que se debruçou sobre os achados de Qumran. As descobertas de O’Callaghan, católico, padre e cientista, foram confirmadas pelo papirólogo Peter Carsten Thiede, cientista e protestante. Carsten ratificou a descoberta de O’Callaghan, com fundamentação documental e histórica que constituíram verdadeiro míssil lançado contra a exegese dominante.

Retomando a questão do conteúdo, a partir do texto de Mateus, vejamos o simbolismo da “rocha”.

Simão recebe o nome novo de Pedro, Cefas, a “Rocha”, não pelo seu próprio caráter. É galileu e , nele, a generalização de Flávio Josefo sobre os galileus parece confirmar-se. A impetuosidade e a volubilidade não estavam totalmente ausentes no pescador da Galiléia, antes de Pentecostes.
O galileu Simão se torna “rocha” por graça. Não pela carne e pelo sangue. Também não apenas por uma iniciativa pedagógica do Senhor, que se teria configurado na mudança de nome. Ninguém mudaria por mudar simplesmente o nome. Na verdade o novo nome já aponta para o mistério. Para o próprio mistério da Igreja, em cuja base o Senhor coloca o pescador galileu, Simão, filho de Jonas.
Sob o novo nome está o simbolismo da “rocha” (Is 51,1). Como em Abraão, “rocha na qual Israel seria talhado”.
Nesse simbolismo já se contém quase toda a teologia sobre a missão de Pedro, o significado universal e escatológico do primado.

À semelhança com Jeremias (1,18), promete-se a um pobre ser humano a conversão em “uma cidade fortificada”, em “uma coluna de ferro”, em “um muro de bronze”. Em Simão a promessa é ainda mais ampla. Ele terá que enfrentar não apenas forças humanas como Jeremias, mas as forças todas do Abismo. A Jeremias a promessa é limitada ao tempo de sua vida e ao seu ministério específico. Simão é designado para congregar o povo todo de Deus, para ligar e desligar, em dimensão que ultrapassa sua existência no tempo. É a promessa da indestrutibilidade que, na verdade, cabe à própria Fundação do Senhor. Só pela força do próprio Senhor tal múnus poderá ser cumprido.

A “rocha” está destinada a perpetuar a Igreja. A garantir-lhe a unidade na fé apostólica.

A par do simbolismo da “rocha”, completa-se a dimensão do primado com o simbolismo das “chaves”.

É conhecido, na Escritura, o poder-serviço que representam as chaves. Lá , em Isaías (22,20), está: “Chamarei o meu servo Eliacim, filho de Helcias (...) Porei a chave da Casa de Davi sobre seus ombros. Ele abrirá e não haverá quem feche. Fechará e não haverá quem abra”.

Esse simbolismo especifica o simbolismo da rocha.
Cabe a Pedro a missão de guarda e vigia, decidindo quem assumiu as condições para “entrar” e quem se negou a assumi-las.

À responsabilidade das “chaves” se agrega a de “ligar” e “desligar”. Pedro deverá decidir na doutrina e na disciplina. É o Senhor quem lhe impõe esse poder como responsabilidade, como serviço. Não se trata de um poder arbitrário, porque a norma do agir de Pedro estará sob a vontade do próprio Senhor Jesus Cristo, manifestada ao Doze e aclarada em Pentecostes. “Aquilo que foi recebido” será a norma de Pedro. O que o Senhor ensinou, fez e determinou será a regra. Pedro não é dono do que recebeu. É depositário, testemunha, anunciador do Caminho, da Verdade e da Vida. Sinal catalisador da unidade, vigia e pastor, sem prejuízo da missão dos demais Apóstolos, conferida diretamente pelo próprio Senhor, porque também a Pedro se impõe confirmar e defender o mandato apostólico dos demais.

Um poder assim só se pode compreender coordenado com aquele outro testemunhado por João (20,23) e concedido aos Doze, para exercê-lo e transmiti-lo a outros que os sucedessem: o poder de perdoar. A “Ekklesia” é uma assembléia, uma comunidade de homens. Marcados todos pelo pecado.
No fundo de todos esses poderes se evoca a necessidade de perdão. A graça do perdão deve integrar a constituição íntima da Igreja. Toda sua história. A verdade é que o homem só pode ser salvo por graça. O Senhor veio como médico, pois todos somos doentes. Veio com a misericórdia e o perdão. O homem precisa da graça. Da misericórdia e do perdão. É dessa realidade que surge a Igreja como ícone da Trindade Santíssima, que criou por amor e quer salvar a todos por misericórdia. A Igreja nasce da Misericórdia que perdoa. Só o pecado contra o Espírito Santo de Graça e de Misericórdia não pode ser perdoado. E não pode porque é o pecado que rejeita a misericórdia e recusa o perdão.

Esboça-se, assim, o conteúdo do primado petrino. Não glória para um homem, mas serviço à Igreja toda. A todos os homens.

* * *

A questão da sucessão.

A era apostólica é o tempo da Revelação pública, normativa, do Testamento Novo. Com o desaparecimento do último dos Doze, da última testemunha direta do Senhor, aquele tempo se encerra.
Como ficaria a Fundação do Senhor, no tempo pós-apostólico? Como se conservariam a memória e a vida da grande Revelação? Como se cumpriria a grande promessa de que o Abismo não prevaleceria contra ela?
Na Igreja do tempo apostólico, os órgãos garantidores da memória e do anúncio eram os Apóstolos, testemunhas convocadas pelo próprio Senhor.
Conforme o Evangelho, o Senhor comunicara a estrutura de sua missão e de sua existência missionária aos Doze, conferindo-lhes poder, vinculando-os ao seu próprio poder.

Como ensina Ratzinger, em COMPREENDER A IGREJA HOJE (ed. Vozes, 1992), cuja lição sobre o sacerdócio tento assimilar aqui, esta vinculação com o Senhor “é sinônimo da estrutura sacramental”.
Esta vinculação capacita os Apóstolos a fazer aquilo que por si mesmos não poderiam, mas que o Senhor realiza através deles. A nova forma de missão dos Doze, que provém do Senhor, insere-se no âmago da mensagem neotestamentária. Trata-se de um tipo de ministério totalmente novo, o sacerdócio da Nova Aliança. É o ministério no qual o ministro pertence inteiramente a um Outro. Ao Senhor Jesus Cristo. Inserido na comunhão de missão com o Senhor, o ministro comunica o que dele não provém e nisto consiste aquilo que denominamos de sacramento. Tem-se, aí, o centro cristológico do ministério ordenado do Testamento Novo.
Era através dos Apóstolos que a Igreja recebia a Palavra geradora do “homem novo”. Com eles é que toda a pregação e toda a vida das comunidades cristãs emergentes podiam e deviam ser cotejadas. Eram as testemunhas qualificadas pelo ministério ordenado conferido pelo próprio Senhor. As “Colunas”.

Desaparecidas as testemunhas diretas, desapareceriam a Palavra e a Vida que o Senhor trouxera? Extintos os Apóstolos, extinguir-se-iam os órgãos garantes da pureza da fé verdadeira e todas as estruturas de sua propagação? Sem as “Colunas” ruiria a Fundação do Senhor?

Evidente que não. O Senhor viera para todos os povos, de todos os tempos. Erguera sua Fundação, prometendo-lhe indestrutibilidade. Ordenara-lhe que anunciasse o Evangelho até o fim dos tempos, por todos os recantos do mundo. Assegurara sua presença no meio dela para sempre. “Eu estarei convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mc 16,15; Mt 28,19-20).

A conclusão é manifesta.
Os Apóstolos haviam entregado à Igreja “aquilo que tinham recebido” do próprio Senhor. O Depósito da Fé estava nela, não como um arquivo morto, mas como Vida dotada do dinamismo divino. Devia necessariamente continuar a ser comunicada. A evangelização era a missão da Igreja a ser cumprida até os tempos do fim.
A ordem do Senhor era imperativa: “Ide e evangelizai”. “Batizai a todos os povos”. “Fazei isto em memória de Mim”. E assegurada com poder: “Quem vos ouve a Mim ouve”. “Os que vós perdoardes serão perdoados”. “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue terá a vida eterna”. Impunha-se fossem superados os limites de suas vidas. Cumpria-lhes providenciar na sucessão em seu ministério. A “sucessão apostólica” era uma disposição subjacente à determinação do próprio Senhor. Outros deveriam ser ordenados para que a Palavra, o Perdão e o “Pão da Vida” continuassem a ser repartidos. Para que a Verdade e a Vida fossem garantidas. Não poderiam ser deturpadas, asfixiadas e canceladas. Deveriam permanecer dinâmicas até o fim dos tempos.

Esse imperativo, entretanto, não é somente um corolário.
Os Apóstolos haviam recebido um ministério único, conferido pelo próprio Senhor. Esse ministério ancorava-se no centro cristológico da Nova Aliança. Não provinha de mandatos das comunidades. Era uma das pilastras da Fundação do Senhor. Outra seria a “successio apostolorum”, a sucessão apostólica.
A continuidade autorizada para exercer o ministério apostólico se radica em fatos concretos da Escritura e da Tradição toda. A própria Escritura nos aponta como se daria a continuidade.
Quando aconteceu Pentecostes, os Apóstolos compreenderam tudo. Tinham efetivado a sucessão de Judas por Matias. Partiram para o Anúncio. O dom do Espírito Santo de Graça se derramara sobre eles e clarificara todo o projeto do Senhor , para a difusão do Reino até os confins da terra. Para o cumprimento da missão.
Partiram, pregando e constituindo comunidades. Antes de irem adiante, transmitiam, no que cabia, o seu ministério a homens escolhidos, que os representassem e os sucedessem na missão apostólica. Vemos Timóteo sendo exortado por Paulo a reavivar o dom recebido pela “imposição das mãos” (2Tm 1,6).

Os Apóstolos ordenavam ministros que, por sua vez, deveriam ordenar a outros pela mesma forma e para o mesmo fim (2Tm 2,2).

Na Carta a Tito se reitera isso:

“Eu te deixei em Creta para acabares de organizar tudo e, ao mesmo tempo, para que constituas presbíteros em cada cidade, de acordo com as normas que tracei” (Tt 1,5).

Impunha-se a continuidade da evangelização, em cumprimento do mandamento do Senhor. Paulo determina que os constituídos por ele constituam outros. O encadeamento sucessório não deveria interromper-se. Era constitutivo e identificador da Fundação do Senhor.
O testemunho de Paulo sobre o ministério apostólico, ordenado, recebido do próprio Senhor e transmitido pelos Doze e por ele, é múltiplo. É com o poder desse ministério que ele interpela a Igreja de Corinto.
“Somos ministros de Deus”, diz Paulo, invocando a fonte de sua autoridade. Proclama que, por esse ministério, eles são “embaixadores em nome de Cristo” e é Deus mesmo que, por eles, os exorta para se reconciliarem (2Cor 5,20).
A autoridade, o poder-serviço exercido no ministério ordenado não provém de consensos das comunidades. Emana do próprio Senhor. “Somos administradores dos mistérios de Deus”, define Paulo (1Cor 4,1), “ministros da Nova Aliança” (2Cor 3,6). Esse, o ministério que não poderia ser cancelado com o perecimento dos Apóstolos. O ministério de que Paulo fala a Timóteo e a Tito. E, aos presbíteros de Éfeso, chamados a Mileto, quando os anima a serem solícitos por “todo o rebanho”. O rebanho “sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos (‘étheto episcópous’, no texto grego), para apascentardes a Igreja de Deus (poimainein ten Ekklesian tou Teou), a qual Ele adquiriu com seu próprio sangue”, acentua Paulo (At 20,28).

No texto referido, Paulo não distingue presbíteros e bispos. Trata-se, ali, do mesmo e único ministério apostólico. Importa anotar que Paulo não deixa dúvidas. Reitero. Os ministros não sucedem no ministério apostólico por disposição da comunidade, mas por investidura do Espírito Santo. Não se versa, ali, uma delegação de funções comunitárias por parte da comunidade. Versa-se um dom do Senhor Jesus Cristo, pelo qual recebemos aquilo que só Ele pode oferecer. Ministério sacramental, conferido pela unção do próprio Espírito Santo de Graça e de Poder, na “imposição das mãos”.
Perceba-se que, num dos textos mencionados acima, o verbo usado é “apascentar” (‘poimainein’), que remete à própria missão do Bom Pastor. É a estrutura apostólica, remetendo ao centro cristológico. Por sua natureza, o ministério dos presbíteros e bispos constituídos é o mesmo dos Apóstolos.
O princípio da “successio apostolorom” nasce com essa identificação.
Os sucessores não são propriamente Apóstolos, no sentido consolidado e ensinado por Lucas. Apóstolos são propriamente os Doze.
Lucas limita o conceito de Apóstolo aos Doze. Separa o dado irrepetível da origem daquilo que permanece na sucessão. Os sucessores não são apóstolos, no sentido que Lucas apropria aos Doze.
Assim, reiteradamente, percebe-se que, no ministério apostólico, atinente ao aspecto sucessório, há dois dados: um, o fato original, irrepetível (‘ephápax’), exclusivo dos Doze, intransmissível, aquilo que só neles há e só eles são como testemunhas diretas do Senhor, sobre os quais o Senhor fundou sua Igreja; outro, o ministério, “ministerium tradendum”, o poder-missão a perpetuar-se por sucessão, que se transmite, através do ato sacramental da ordenação episcopal.
Estes dois dados constituem um princípio intrínseco à Revelação e à Fundação do Senhor.
A condição de ser Apóstolo, no sentido apropriado aos Doze, por Lucas, é única e base na Fundação do Senhor.
O poder essencialmente cristológico de ensinar, reconciliar, fazer a Eucaristia, apascentar, o “ministerium”, é vital para a continuidade da mesma Fundação no tempo e que, por isso mesmo, deve ser transmitido (“tradendum”). Perpetua-se nos sucessores, que “perseveram na doutrina dos Apóstolos”, fiéis à “Traditio”.

A primeira Carta de Pedro ilustra o fato assinalado da sucessão:
“Aos presbíteros que estão entre vós, exorto eu, seu co-presbítero (simpresbíteros) e testemunha dos sofrimentos de Cristo, participante da glória que há de ser revelada”(1Pd 5,1).

Manifesta-se, aí, ensina Ratzinger, a identificação teológica entre o ministério dos Apóstolos e o dos que por eles são constituídos para “apascentar” e por sua vez constituírem outros no mesmo ministério. Pedro, Apóstolo, se autodenomina “co-presbítero”. Vincula, assim, o sacerdote (presbítero, bispo) ao Senhor, o “Pastor Bonus”, ao qual o Apóstolo está vinculado.

A Tradição espelha a Escritura apontada acima.

Clemente de Roma, testemunha da era apostólica, atesta que “os Apóstolos receberam a Boa-Nova da parte do Senhor Jesus Cristo” e, “munidos de instruções (...), confiados na Palavra de Deus, saíram a evangelizar (...) Proclamando a Palavra no interior e nas cidades, estabeleciam suas primícias como Bispos e Diáconos, dos futuros fiéis (...). Como tivessem perfeito conhecimento do porvir, estabeleceram (bispos) e deram, além disso, instruções no sentido de que após a morte deles, outros homens comprovados lhes sucedessem em seu ministério”. (Carta de Clemente Romano à Igreja de Corinto, tradução direta do grego por Paulo Evaristo Arns, ed. Vozes, 1971.)
Perceba-se. O Testemunho dos sucessores retirava sua força “daquilo que haviam recebido”. Do testemunho dado pelos Doze e por Paulo, que com os Doze conferira tudo.
A palavra e a testemunha se vinculam reciprocamente. Na Igreja primitiva, a palavra ligava a testemunha, mas era a testemunha que lhe assegurava a inequivocidade. Recebera a palavra e era depositária autorizada do sentido inequívoco da palavra.
A concepção luterana de que a sucessão se dá na palavra e não nas estruturas não tem suporte apostólico e histórico. Sem a marca estrutural da origem, a palavra se dissolve no subjetivismo individualista. Domestica-se segundo os gostos da moda. Esvai-se. O conteúdo original acaba por ser cancelado.
Registre-se. A “testemunha sucessora”  testemunha da testemunha direta  não se esgota no indivíduo isolado. Insere-se, no que cabe, na própria comunidade apostólica e na estrutura radicada nos Doze. Relembre-se que até Paulo retornou a Jerusalém com o fim específico de “ver Pedro” e conferir sua palavra com a palavra das “Colunas”, para “não correr em vão”.
A testemunha não o é pela sua própria potência. Como Pedro não é “rocha” pela carne e pelo sangue, pelo seu próprio valor individual. Somente o Senhor comunica o “Pneuma”, o Paráclito que ensina a Verdade e transmite a Vida à Igreja, com “poder”, para servir a todos. É na Igreja que a sucessão acontece. Contra ela é que “as portas” do Abismo não podem prevalecer.
Não tivéssemos a Igreja viva, a Igreja-testemunha, a “imposição das mãos”, como sinal que realiza aquilo que significa, não mais estaria acontecendo. Extinguir-se-ia o encadeamento sucessório.
E a Igreja viva só tem vida pelo Pneuma, o Espírito Santo vivificador, enviado pelo Pai e o Filho, dos quais procede. É Ele quem “fundiu os Apóstolos, sucessores e discípulos, na unidade interior, no ‘Corpo de Cristo’, fazendo nascer a Igreja” (K. Adam). Nas “estruturas sacramentais” da Igreja se encontra sempre a tríplice realidade: “palavra-testemunha-Pneuma”.

Joseph Ratzinger, cujas lições tento seguir aqui, sintetiza assim o que procurei exprimir: “O princípio da Tradição em sua forma sacramental da sucessão apostólica foi elemento constitutivo para a existência e continuidade da Igreja”.

* * *

A sucessão de Pedro, a projeção no tempo e o local.

Com os registros sobre a sucessão em geral, chega-se à última questão aludida ao início: onde se encontra a sucessão a Pedro?

Anoto, primeiro, um fato dentre os que pulsionaram as primeiras gerações da Igreja a marcar as sedes apostólicas, como lugar induvidoso da sucessão legítima. Sedes em que se guardava e vivia a memória pura da palavra testemunhada. Aquelas nas quais subsistia, garantidamente, a Fundação do Senhor. Lá era onde se poderia encontrar a palavra da origem, resistente a todo o arbítrio da especulação e da interpretação individualista.

O fato é conhecido. Já no ocaso do séc. I, a Gnose ameaçava a Igreja, por dentro e por fora. Um modelo intelectualista, contra-institucional, privilegiava a “livre interpretação”, a especulação subjetivista.
No confronto com a Gnose, o apelo a testemunhas individuais já não conseguia aclarar a verdade. Os gnósticos produziam escritos, com grande intensidade. Ora usando os escritos de origem apostólica, interpolando, distorcendo com interpretações inseridas nos textos neotestamentários ou acrescendo-lhes de fantasias; ora criando inteiramente novidades estranhas e atribuindo-as a uma origem apostólica, pela aposição do nome de algum dos Apóstolos. Muitos autores se diziam receptores de revelações secretas, oriundas dos Apóstolos, editando-as sob o nome deles. Os apócrifos se multiplicavam, instalando confusão.
Para discernir os escritos apostólicos autênticos, impunha-se buscar referências concretas e seguras. Os cristãos fiéis, alertados pelos seus pastores, como se vê em Irineu de Lião, entenderam que tais referências só poderiam ser encontradas nas sedes apostólicas. E, entre todas, naquela que as unia em uma só Igreja, a Sé da Unidade na caridade, a Sé de Pedro, Cefas, a “rocha”. Lá onde se depositavam as “chaves”. Somente ela poderia constituir a Sé normativa, que manteria o cânon dos escritos apostólicos verdadeiros. Fora Pedro quem recebera o múnus para “ confirmar os irmãos”.

Os cristãos identificaram imediatamente a Sé normativa, na Igreja de Roma. A que fora fundada por Pedro e por Paulo e onde ambos haviam testemunhado o Senhor com o próprio sangue. Irineu, que transcrevo adiante, nos dá conta disto, nos anos cem.

Eusébio de Cesaréia, nos anos trezentos, escrevendo a história da Igreja, indica três sedes de Pedro: Antioquia, Alexandria e Roma. Demarca, entretanto, que a Sé de Roma era a “principal”. Nela Pedro se estabelecera e nela derramara o sangue pela fé. Por isso tem o cuidado de registrar a sucessão na Sé de Roma, listando os nomes a partir de Pedro. Aos sucessores de Pedro é que se comunicava a primazia petrina.

Tinha razão o historiador Eusébio.

Já no ocaso do séc. I, vemos a comunidade de Corinto, apelando à Igreja de Roma, para resolver seus desencontros e divisões. Poderia ter postulado à Igreja de Éfeso, mais próxima, onde João ainda vivia ou há bem pouco morrera. Não obstante, recorre a Clemente, terceiro sucessor de Pedro, na Sé de Roma. Com caridade e firmeza, Clemente responde. Sua Carta aos Coríntios demonstra a consciência do múnus que desempenha. Instrui, proclama o princípio da autoridade-serviço ínsito à sucessão apostólica. Exorta, exige obediência aos princípios decorrentes “daquilo que foi recebido”. Com humildade de servidor dos irmãos, mas firme na doutrina recebida na origem, impõe e lavra decisão. Se os responsáveis pelas divisões não acolherem sua palavra, incidirão em pecado. Decreta como pecaminosa a divisão. (Carta referida, n. 50, p.60.)

Na primeira década do séc. II, Inácio, bispo de Antioquia, contemporâneo dos Apóstolos, discípulo de João, é condenado às feras pelo Império. Levado a Roma, para execução, escreve à Igreja sediada lá. Sua carta chegou até nós. Na introdução, Inácio, guia e orientador das comunidades orientais, expressa uma veneração especial à Igreja sediada no território romano, pela pureza de sua fé, e a proclama como a Igreja que preside a todas as demais, na caridade. Quer testemunhar a fé no Senhor com o próprio sangue e pede não tente a Igreja livrá-lo do martírio. Roga que apenas rezem, esclarecendo que isso não tinha a pretensão de uma ordem: “Não dou ordens como Pedro e Paulo. Apenas suplico”.

Testemunho histórico de uma força ímpar é, sobretudo, o de Irineu, emigrado do Oriente para Gália e bispo da Igreja de Lion, na segunda metade do séc. II. Fora discípulo de Policarpo, herói da fé, martirizado pelo fogo, bispo de Esmirna, que o próprio Apóstolo João ordenara e com outros Apóstolos convivera. Irineu fala com a autoridade de quem tinha nos ouvidos “o eco da palavra dos Doze”, através de Policarpo. Deixou-nos uma obra que o distingue como um dos maiores teólogos da Igreja dos primeiros séculos. Em “Adversus Haereses”, do ano 180, legou-nos lição histórica sobre a matéria destas anotações.

Vale citá-lo:

“A tradição dos Apóstolos, que foi manifestada no mundo inteiro, pode ser descoberta em toda Igreja, por todos os que queiram ver a verdade. Poderíamos enumerar aqui os bispos que foram estabelecidos nas Igrejas pelos Apóstolos e os seus sucessores até nós (...). Como seria longo demais enumerar as sucessões em todas as Igrejas, limitar-nos-emos à Igreja maior. À mais conhecida e mais antiga de todas (como referência para as demais). À Igreja constituída pelos dois gloriosos Apóstolos Pedro e Paulo, em Roma. Àquela que tem a tradição dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens e que chegou até nós pela sucessão dos bispos. Assim confundiremos todos quantos (...) se juntam indevidamente (sem legitimidade) em outras partes.
É com esta Igreja, por causa de sua mais autorizada primazia (“propter potentiorem principalitatem”), que deve harmonizar-se toda a Igreja, os fiéis de todos os lugares. Ela é aquela na qual sempre foi conservada a Tradição vinda dos Apóstolos. Tendo assim fundado e edificado a Igreja de Roma, sua administração episcopal foi transmitida a Lino (primeiro sucessor de Pedro). Aquele Lino mencionado por Paulo na Carta a Timóteo. Lino teve como sucessor Anacleto. Depois dele, em terceiro lugar, Clemente, que conviveu com os próprios Apóstolos e lhes falou. Ele tinha a pregação dos Apóstolos nos ouvidos e a Tradição ante os olhos. (...) Sob Clemente, por ocasião de uma discussão bastante viva na Igreja de Corinto, foram escritas cartas importantes pela Igreja de Roma à Igreja de Corinto, a fim de reconduzi-los à paz, restaurar a fé e reiterar a Tradição recentemente recebida dos Apóstolos (...)” (Adversus Haereses, III; 3,1-2).

Os fatos e testemunhos apontados, dos sécs. I e II, já demarcam qual a sé apostólica normativa reconhecida pelas Igrejas Particulares então constituídas no Oriente e no Ocidente. Reconhecimento que decorre, exclusivamente, da historicidade da sucessão petrina em Roma.

Arrolo mais alguns dados.

Lembro Pápias, bispo de Hierápolis, no trânsito do séc. I para o séc. II (70-140),contemporâneo de Inácio de Antioquia e de Policarpo de Esmirna. Seus escritos das duas primeiras décadas dos ano cem, nos dão conta da sucessão de Pedro em Roma. Atestam que Marcos acompanhava Pedro e escrevia “fielmente, embora não em ordem”, tudo quanto Pedro pregava. Eusébio de Cesaréia, tanto na “História Eclesiástica” quanto nas “Crônicas” conservou fragmentos dos textos de Pápias.
Hegesipo, escritor eclesiástico do séc. II, quando Aniceto era o décimo sucessor na cátedra de Pedro (154-166), visita diversas Igrejas para certificar-se da doutrina diretamente transmitida pelos Apóstolos aos bispos seus sucessores. Em Roma verifica ter havido até Aniceto sucessão legítima sem interrupção. Isto era importante para ele, porque lá estava a Sé de Pedro.
Policarpo, já mencionado, pela mesma época também se dirige a Roma, para obter a concordância de Aniceto, referente à data da celebração da Páscoa nas Igrejas do Oriente. Aniceto o acolhe e se despedem em paz e comunhão. Pouco tempo depois (155), Policarpo, já idoso, enfrenta o martírio e testemunha a fé.
O caso de Vítor, décimo terceiro sucessor de Pedro (189-198), é veemente para comprovar a sucessão petrina em Roma. Reacendera-se a questão da data da comemoração pascal. Vítor ameaça desligar algumas Igrejas do Oriente da Sé Romana, sinal de unidade da Igreja Universal. Irineu parte de Lião, para ponderar a Vítor que se tratava de tradições litúrgicas e não de doutrina da fé. Reconhece-lhe autoridade para “ligar” e “desligar”, canonicamente, mas argumenta que essa autoridade só deveria ser exercida para defender a Tradição Apostólica, em matéria de fé e de moral.

Como estes registros não têm pretensão de tratado, concluo com a intervenção de Leão Magno, quadragésimo quarto no rol dos sucessores de Pedro (440-461), no Concílio de Calcedônia (451). Debatia-se a questão da “natureza” do Senhor, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Leão não pode deixar Roma. Envia delegados e carta (“Epistola Dogmatica ad Flavianum”), na qual expunha a doutrina das “duas naturezas”, humana e divina, sem confusão e sem mistura, na única Pessoa do Verbo, como a verdadeira interpretação “daquilo que fora recebido”. Documento que também ficou conhecido como “Tomus Leonis”.

A reação dos Padres Conciliares demonstra como a certeza da sucessão de Pedro em Roma era induvidosa. Examinada a doutrina exposta na carta, aclamaram-na , exclamando: “Pedro falou pela boca de Leão!”.

Detenho-me, aqui. Deixei de anotar as fontes das últimas anotações por se encontrarem em qualquer História da Igreja de alguma significação. Listo apenas mais uns poucos escritores cristãos, entre os quais alguns dos “Santos Padres”, dos sécs. III, IV e V. Todos testemunhas da sucessão em Roma.

Além dos já referidos, dos sécs. I e II, lembro pela ordem dos séculos, Clemente de Alexandria, Hipólito, Cipriano, Orígenes (séc. III). Atanásio, Hilário de Poitiers, Ambrósio (séc. IV). Jerônimo e Agostinho (séc. V). É de Agostinho a expressão “Roma locuta, causa finita”.

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O primado evidencia-se da Escritura e se inscreve na história. Sua projeção no tempo, sua continuidade, deu-se na Sé de Roma, a sé da “potentior principalitas”, na formulação de Irineu. Normativa, “centrum unitatis”, cujo órgão é o bispo que sucede a Pedro.

Pedro a fundou, nela se estabeleceu e testemunhou a fé pelo martírio, fixando o lugar da sucessão.

Também em Roma foi sepultado e lá se encontram seus restos mortais, conforme comprovou o trabalho de mais de vinte anos da epigrafista Catherina Guarducci e dos cientistas que integraram a pesquisa. A identificação histórica foi anunciada por Paulo VI, em 1968. Superadas as vacilações da equipe que fizera as escavações de 1940 a 1949. O grafite “PETR ENI”, em caracteres gregos, analisado por Guarducci, abriu o caminho para a identificação. A tradição foi confirmada.

A primazia normativa da Sé Romana vem do Apóstolo e se comunica, no que cabe, aos bispos que nela o sucedem. De Lino a João Paulo II, duzentos e sessenta e quatro sucessores legítimos. Esse é o dado histórico. O primado romano não ancora em lendas nem é conseqüência do arbítrio. O testemunho da Igreja-testemunha conforta-se no fato e bendiz o Senhor porque Ele é fiel e cumpre a “promessa”.

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O propósito destes registros parece atingido.
Agrego, entretanto, mais algumas anotações com eles relacionadas. Faço, depois, incursão por outro território que a geografia dos doutos silencia. Arrisco, porque ali se conforta “aquilo que foi recebido”. “Aquilo” é vivo, pela presença atuante do Senhor. Cumpre-se a “promessa”.

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Anotações agregadas.

Ao agregar estas últimas anotações, reitero: O Bispo de Roma, a quem chamamos “Papa”, é sucessor de Pedro porque bispo da Sé de Pedro. É daí que lhe vem o múnus petrino.

Pela “imposição das mãos” e da oração consecratória, na ordenação episcopal, se dá a inserção dos ordenados no Colégio Episcopal da Igreja, que sucede ao Colégio Apostólico. É a “successio apostolica”. Pela designação e investidura na Sé de Pedro, o bispo se insere especificamente na “successio Petri”. Na condição de “Successor Petri”. Não naquilo que é exclusivo do Apóstolo e que se deu uma e única vez por todas (“ephápax”), mas, na diaconia de Pedro. Na missão de apascentar. No poder-dever de vigia, guarda, sentinela da “memória”. No múnus de órgão da Igreja, garante da Tradição Apostólica. Sinal da unidade, da comunhão, na verdade e na caridade. Para exercer esse múnus, recebe ele a “potestas” e a “jurisdictio”. Em última instância ele deve dizer a fé da Igreja do Senhor. Ele deve confessar a fé recebida dos Doze e nela confirmar os irmãos.

O seu limite? Esse mesmo é seu limite. Ele é guarda e não dono da Verdade recebida. Cumpre-lhe guardar e perseverar na “doutrina dos Apóstolos”. Não pode inventar nem manipular. Não pode cancelar nada que diga com o fundamental do “Depositum fidei”. Em exemplo, nada que diga com a substância dos Sacramentos ele pode alterar. Essa é a lição da origem, que Pio XII proclamou veementemente e que João Paulo II reiterou, em 1994, na Carta Apostólica “Ordinatio sacerdotalis”.

O múnus petrino é um dom do Senhor à Igreja toda. Pedro atuava esse dom em comunhão com o Colégio dos Doze. Cumpre ao sucessor de Pedro atuá-lo na comunhão com o Colégio dos Bispos.

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Referi que a inserção no Colégio Episcopal se dá pela “imposição das mãos”. Acentuo que não se trata, aí, apenas de um sinal jurídico-formal. Trata-se do Santo Sacramento da Ordem. O sinais dos sacramentos realizam aquilo que significam. Têm uma densidade transcendente. Há neles o dinamismo divino da Graça. E, no caso, marcam o ordenado com marca indelével.

A designação de um bispo para a Sé de Pedro tem outra vertente. É ato jurídico da Igreja, regulado canonicamente. Um colégio eleitoral, canônico, elege o sucessor de Pedro. Esse ato é vinculativo para o eleito, que aceita a escolha, e para a Igreja toda, mas não acrescenta nenhum “poder de ordem”. O eleito não se torna um “superbispo”. Continua bispo como os demais. O que se lhe acrescenta é a investidura no “Primado”, no “múnus Petri”. Impõe-se ao investido o “poder-dever” de “signum unitatis”, na fé apostólica e na caridade. De sentinela da “memória” da Igreja, na comunhão com todos os bispos do passado e do presente que “perseveraram e perseveram na doutrina dos Apóstolos”. “Poder-dever” que implica uma “jurisdictio”, que é serviço. Mas isso somente enquanto se mantém à testa da Sé Apostólica de Roma. Pode renunciar. Se renuncia, cancela-se nele a condição de “primus inter pares”, para servir a todos. Outro o sucederá.

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A desproporção entre o humano do homem e o divino de Deus, tanto no sacramento da ordenação episcopal quanto na investidura como sucessor de Pedro, configura uma tensão tão grande que indicia, por si mesma, não ser invenção do homem. Não poderia jamais manter-se sem a permanente presença atuante do Senhor.
É a continuação daquela tensão que já se manifestou na criação da Igreja sobre doze homens simples e frágeis, com a missão de suscitar o Reino no mundo inteiro. Mais ainda, na transformação de uma pequena “pedra de tropeço” em “rocha” indestrutível.

A “promessa” do Senhor que funda nossa segurança, humanamente impensável, não nos contamina de triunfalismo. Impele-nos à gratidão e à confiança humilde. Pedro não é um príncipe ou um rei, um todopoderoso ao desenho do mundo e de suas categorias. Pedro é um servidor. O primeiro, por ser o último. Não se pode imaginar Pedro como uma tríplice coroa. Paulo VI viu isso e livrou a Igreja daquela contaminação cultural, que talvez em algum tempo tenha sido exigido como símbolo epocal.

O zelo ecumênico conduz, hoje, alguns teólogos a matizar o primado e a consistência da “rocha”. É um equívoco letal. Não se pode transacionar à custa da verdade. O reducionismo não é humildade. Qualquer hipótese de redução na substância “daquilo que foi recebido” agride a integridade e a gratidão. Desfigura o mistério da Graça, da Misericórdia e do Perdão, que jorra dos poços eternos da Trindade, através do Coração aberto do Ressuscitado.

Também não se justifica o encurtamento da verdade por temor da prepotência e do escândalo. A Igreja pode já ter sofrido com isso. Mas nem nos momentos sob esse aspecto mais tristes o Senhor abandonou sua Igreja. O “Depositum Fidei” permaneceu intocável. A promessa do Senhor se cumpriu. E mesmo não há mais falar em prepotência de Roma, depois do exemplo de Paulo VI, em 1975. Ao receber o Metropolita Melitão, representante do Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, na comemoração dos dez anos do levantamento das excomunhões mútuas de 1054, o Papa beijou-lhe os pés. O gesto do Sucessor de Pedro sacudiu o mundo. O Patriarca Demétrio I, ao tomar conhecimento, exclamou: “Paulo VI se igualou aos Pais da Igreja!”

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Os desertos e os charcos pelos quais transitou a Igreja, na história, nós registramos. Com dor, mas com realismo. A infecção de seus quadros pelo mundo, em diversos períodos da história, causaram lesões e rupturas que só a intervenção direta do Senhor pode sanar. Mas também isto só nos confirma que é o Senhor quem sustenta a Igreja. Ela é do Senhor e não nossa, na onticidade última. Essa, a nossa segurança. É na “promessa” que nós cremos e cofiamos.

Só o poder da Graça impede que as potências do Abismo prevaleçam. Dois mil anos de presença viva é fato impossível, na história do tempo, sem a atuação do Paráclito que o Senhor continuamente envia. Inclusive impedindo a errabilidade humana, quando a Igreja proclama “urbi et orbi”, “ex cathedra Petri”, “aquilo que foi recebido” como fundamental na fé apostólica. Aí se acumula o ponto mais elevado da tensão referida há pouco. Vivemos essa tensão, na fé batismal. Sabemos que é o Senhor quem garante. Não a sabedoria nem valor dos homem. Nisso nós cremos. Por graça.

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A incursão censurada pelos doutos.


Agregadas as anotações supra, arrisco a incursão que anunciei. Adentro o território que a geografia dos doutos silencia: o território das revelações particulares que tenho por autênticas(1), segundo os critérios de discernimento. Não vinculam elas a consciência do católico, enquanto católico, a qual só a Revelação pública, normativa como tal, vincula . Daí por que os eruditos sobre elas silenciam , quando não as desprezam frontalmente para não “comprometer” seus diplomas.

Para mim, entretanto, o fato está aí. Temos o fato. Há dois mil anos que o temos. O Senhor sempre interveio extraordinariamente junto a seu Povo e continua intervindo. Sobretudo, nos momentos duros para sua Fundação, nas dobras críticas da história. Por sobre os socorros permanentes de que dotou a Igreja, Ele a socorre por formas extraordinárias, imprevisíveis, desconcertantes para os homens de ciência. Ele é o Senhor-que-prometeu-e-cumpre. O Senhor que cumpre todas as promessas, a despeito de nós mesmos.

A incursão é curta e rápida. A história das revelações privadas autênticas(1) é vasta e permeia toda a história da Igreja, mas me cinjo aqui a uns poucos fatos mais recentes.

Lembro. Quando Pio IX, em 1854, proclamou a verdade da Concepção Imaculada da Mãe Bendita do Senhor, em vista dos méritos do Filho, mais se adensaram as rupturas existentes. Então, pouco tempo após, o Senhor interveio para ratificar a proclamação do Sucessor de Pedro. A própria Mãe Bendita, em missão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, veio ao nosso encontro, em Lourdes, e declarou simplesmente, sem rodeios: “Eu sou a Imaculada Conceição”.

Repito. Sei que a “prudente normalidade” dos doutos censura a invocação de tais fatos. Perante eles isso causa “desprestígio”. Não importa.
Arrisco mais.
Lembro Fátima. Aponto Medjugorje. Em ambos os locais a Mãe Santíssima desvela carinho e cuidado especial para com a Sé de Pedro.

Concluindo, lembro o zelo com que a Mãe Santíssima se manifesta no Movimento Sacerdotal Mariano, desde 1973 até hoje, a respeito de Paulo VI, João Paulo I e de João Paulo II. E lembro, por sua singularidade, outra palavra que nos é dada hoje, por um profeta que vem da “Ortodoxia”, convocando todos a reconhecerem e a seguirem Pedro, em João Paulo II.

Do seio da Igreja Ortodoxa o Senhor suscitou Vassula Ryden(2), grega de origem. Vassula reitera aquilo que nos foi testemunhado por Mateus, na perícope clássica sobre Pedro.

O próprio Senhor, Deus vivo e atuante, irriga nosso deserto, dirigindo-se a todos os cristãos(3), interpelando-nos e exortando-nos, através de seu profeta.

Interpela-nos, confirmando a perícope de Mateus:

“Não pedi Eu mesmo a Pedro que apascentasse as minhas ovelhas? Não o escolhi Eu mesmo para apascentar meus cordeiros? Não pronunciei Eu mesmo as palavras: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’?” (A Verdadeira Vida em Deus, vol. II, p. 38, Caderno 18, Vassula Ryden, ed. port.).

Exorta-nos, ratificando a sucessão de Pedro em Roma:

“Fui eu, o Senhor, que escolhi Pedro, Pedro que hoje é João Paulo II. Regressai todos a Pedro, porque fui Eu, vosso Deus, que o escolhi. Fui Eu quem lhe deu uma língua de discípulo e, por Mim, ele é capaz de ser fiel até o extremo”. (...) Permanecei em comunhão com ele, custe o que custar” (op. cit., vol. VI, p. 57, mensagem de 17.3.1993).

A interpelação e a exortação são claras. Sem reducionismo. Sem sombra de “pancristianismo”.

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“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. A Escritura e a Tradição se confirmam hoje. Nos territórios da história, da profecia e do milagre.