Revista Cultura
e Fé, n° 122 – 2008
Eno Dias de Castro
enodiasdecastro@gmail.com
A IGREJA EM DÍVIDA?
Mesmo após a Ordinatio Sacerdotalis continuam não poucos presbíteros a proclamar, até em
manifestação impressa, que a Igreja tem uma dívida pendente para com as
mulheres, por não lhes ter propiciado, em dois mil anos de existência,
acesso ao ministério ordenado.
Na minha limitação de leigo, peço vênia para deles
discordar. Uma dívida, mesmo quando metafórica, tem como pressuposto um
direito. No caso, o pressuposto seria o direito ao ministério ordenado.
Entretanto, é consabido que o acesso ao ministério
ordenado não é um direito. Dom, gratuidade pura, o ministério ordenado não pode
ser objeto de reivindicações. Ninguém tem direito a ele. Nem o homem nem a
mulher.
Quem convoca para esse ministério é o Senhor. Foi Ele
quem o instituiu e foi Ele quem convocou homens e não mulheres para exercê-lo “in persona eius”. Por que agiu assim não
sei. Foi desígnio seu. Ele é o Senhor e Redentor nosso. A Igreja é dEle. É a
Fundação dEle.
O ministério ordenado é um dom ao Povo de Deus. Um
serviço. Não um direito. Muito menos denotação de “status”. Reivindicá-lo para
si ou para determinado segmento parece-me equívoco espesso. A compreensão
neotestamentária da vida, no Povo de Deus, desautoriza reivindicação de
funções.
Lembro Paulo, em Ef 4,11-12: “(...) kai autós édoken”. E “Ele próprio deu, constituiu ministros a quem
quis”, segundo seus desígnios, “para
a obra do ministério” e construção de seu Povo. Se convocou somente um dos
termos do binômio humano, foi desígnio seu. O Senhor convoca para esse
ministério a quem quer. E convoca para servir. Não para autoafirmação de um dos
termos do binômio “vir et mulier”.
* * *
Se as duas
partes da espécie constituem um
binômio, constituem-no como binômio de reciprocidade. Não de antinomia ou
dependência que subjuga e algema. Desenha-se um binômio de interdependência
recíproca, para a realização de um destino único, idêntico. De um projeto de
plenitude para todos. Se o Senhor chamou apenas homens, varões, para o
ministério ordenado, foi decisão sua.
Não sei, já disse, por que dispôs assim. Alguns
arriscam razões para esse agir do Senhor. De minha parte, confesso que não
ouso. E não ouso pelo simples fato de que não assino os argumentos de razão
humana apresentados pelos tratadistas para justificar a escolha de um dos
termos do binômio.
Na verdade,
humanamente falando, penso que as
mulheres discípulas, à época, foram muito mais dignas para a convocação. Todas
ficaram firmes, de pé, junto à cruz, quando Jesus foi crucificado. Do grupo de
discípulos homens, apenas um ficou. Os demais, ao que se sabe, fugiram.
* * *
Os cobradores da suposta dívida, despercebem o fundamental. E o fundamental, no caso, é
o fato de que a Igreja não é dona dos sacramentos. É apenas depositária e
administradora.
Isso não é novidade. Foi objeto de proclamação de Pio
XII, em 1947. Está lá, sem rodeios, na
Constituição Apostólica “Sacramentum Ordinis”.
Para não deixar dúvidas o Sucessor de Pedro invocou as fontes da
Revelação e o Concílio de Trento.
O texto: “A Igreja não tem poder algum sobre a
substância dos sacramentos, quer dizer, sobre aquilo que Cristo Senhor, conforme o testemunho das
fontes da Revelação, quis fosse mantido no sinal sacramental.” (AAS, 40, 7, 1948).
Quem quiser conferir pode também abrir o Denzinger, n°
3857. Lá está o texto da encíclica.
Mais tarde a declaração “Inter insignores”, da
Congregação para a Doutrina da Fé (1976), aprovada por Paulo VI, sintetizou a
matéria em tela, dizendo lapidarmente: “Quae Christus et Apostoli
fecerunt normae perpetuae sunt”. O que Cristo e os Apóstolos fizeram
constitui norma para sempre, em tudo o que diz com o fundamental da fé e dos
sacramentos.
Os integrantes da CDF tinham na memória um testemunho
do ano 96. Testemunho do terceiro sucessor de Pedro, Clemente Romano,
companheiro dos Apóstolos, homem da era
apostólica portanto.
Clemente testemunhou da Igreja de Roma para a Igreja
de Corinto, que os Apóstolos, “instruídos pelo Senhor, tendo conhecimento
das futuras contestações estabeleceram como sucessores homens, varões,
comprovados, para os sucederem em seu ministério” (Carta aos Coríntios, 44,
ed. Vozes, ps. 44/45, trad. do grego por P.E. Arns).
Por sobre tudo isto, temos, de 1994, a sentença definitiva de João Paulo II, na Carta
Apostólica “Ordinatio Sacerdotalis”,
dirigida a todos os bispos da Igreja Católica: “ … Portanto, para ser excluída qualquer
dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição
divina da Igreja, em virtude de meu ministério de confirmar os irmãos (Luc 22,23),
declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação
sacerdotal a mulheres e que esta sentença deve ser considerada definitiva para
todos os fiéis católicos”.
* * *
A Igreja não pode inventar, mutilar ou cancelar coisa alguma que diga com a
substância da fé e dos sacramentos. Nem o múnus petrino é o de representar uma
média de opiniões ou a opinião de maiorias eventuais. Não pode o Sucessor de
Pedro sujeitar-se a pressões lobistas, no que respeita à fé. O que vincula a
Igreja é a verdade recebida do Senhor e dos Apóstolos. Cumpre-lhe vivê-la e
ensiná-la sem transações ou manipulações. Ainda que para tanto se veja ante o
martírio. Essa força ela tem e terá sempre. Não pelo valor dos homens
investidos no poder-serviço de governo, mas pela garantia da promessa
que o Apóstolo Mateus gravou em seu evangelho (Mt 16,18).
Na sentença de João Paulo, antes referida, estamos diante da explicitação de uma
verdade que integra o Depósito da Fé Apostólica. Verdade que à Igreja só cabe
guardar e transmitir, sem faculdade alguma de cancelá-la, encurtá-las o
contorná-la.
O Bispo de Roma, sucessor de Pedro, não propõe
nenhuma formulação dogmática nova. Confirma somente uma certeza que foi constantemente
afirmada e vivida pela Fundação do Senhor, desde as origens. É declaração de
uma doutrina recebida como definitiva na própria origem, não reformável.
Não se trata de ato
meramente prudencial nem de hipótese mais provável. Menos ainda uma disposição
disciplinar. Deu-se forma concreta, explícita a uma certeza vivida pela Igreja
desde o princípio e que, agora, alguns quiseram abalar sem base em dúvida
verdadeira.
É ato de magistério
não propriamente definidor, mas confirmatório de uma compreensão preexistente
da fé comum recebida desde a era apostólica. Ato de magistério autêntico, que
se conumera entre aqueles garantidos pela promessa do Senhor a Pedro (Mt 16,
18).
O que João Paulo defendeu foi o que
recebemos na origem, como atestam também as Igrejas que se afastaram da comunhão com a Sé de
Roma, mas mantiveram a apostolicidade,
pela ordenação episcopal válida.
Assim foi na Igreja indivisa dos três primeiros séculos. Assim permaneceram os
segmentos separados, nos quais continuou a correr a seiva da Sucessão
Apostólica, porque pastoreados por homens devidamente ordenados, marcados pela
ordenação episcopal verdadeira.
É o que se verifica nas Igrejas
pré-calcedonianas , separadas no séc.V. O mesmo vale para o espesso segmento
denominado Igreja Ortodoxa, separado no séc. XI. Nelas não se obstruiu o canal estabelecido pela “imposição das
mãos”, pelo qual a “gratia successionis”
mana dos poços eternos da Trindade Santíssima. Não se cancelou nem se distorceu
nelas o que foi recebido na origem, quanto ao Sacramento da Ordem. Continuaram,
sob esse aspecto, em consonância com a Católica, na qual induvidosamente
subsiste a Fundação do Senhor.
O Patriarca Mar Dinkha IV, da Igreja
Assíria do Oriente, demonstrou isso na visita à Sé de Roma, em
novembro de 1994. O mesmo se verificou, em junho de 1995, quando Bartolomeu I,
Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, também visitou o Sucessor de
Pedro.
A Tradição Apostólica, sem qualquer hiato na Igreja Católica e naquelas
Igrejas separadas que mantiveram a sucessão de bispos verdadeiros, aponta para
a falácia da hipótese de condicionamento cultural na reserva do ministério
ordenado ao homem, varão.
Os bispos, por sua ordenação
sacramental válida, e pela tradição
eclesial recebida mediante a ordenação, marcam a continuidade e unidade com a
origem. Relembre-se, com Ratzinger, que o conteúdo da sucessão apostólica é a
tradição e a forma é o Sacramento da Ordem.
A continuidade com o Colegiado
Apostólico dos Doze é fator
essencial. Por ele se identificava, claramente, já no séc. II, a “successio
apostolica”. Sucessão apostólica na qual se atesta, constantemente, a
recepção da reserva do Sacramento da Ordem ao varão como disposição do Senhor.
Disposição encarnada na história pelos Doze e por eles transmitida à Igreja primitiva.
Isso é o fato. Fato que por si só já constitui garantia contra a mera hipótese
do condicionamento cultural machista.
* * *
A hipótese de submissão à cultura
da época por parte do Senhor e dos
Apóstolos não se sustenta. A realidade neotestamentária a elimina.
Primeiro, os Apóstolos constituíram sucessores e determinaram
que estes constituíssem, como tais, outros homens “aprovados”.
Homens. Especificamente, varões, “andres”, “viri”, para o fim de
os sucederem. Tal como vemos em
Clemente Romano, Irineu e Justino, respectivamente testemunhas dos sécs. I e
II. Por exemplo. E, marque-se bem, fizeram isso de dentro da cultura grega e
latina, nas quais era comum a figura das sacerdotizas. Portanto, ao ensinarem
isso, essas testemunhas da Igreja dos primeiros tempos não o fizeram jugulados
por cultura que não admitia mulheres com funções no culto religioso.
Segundo, o Senhor, por sua vez, não se sujeitou a algemas
culturais em nenhum outro aspecto da escolha dos Doze. Por que somente se teria
sujeitado ao escolher apenas varões para
o ministério ordenado?
Lembre-se. Em todos
os patamares o Senhor agiu com independência
absoluta, revelando uma autoridade única. Sem precedentes. Reiterava,
com freqüência: “Foi dito, Eu porém vos digo”.
Mais do que isso,
não é a proclamação de Si Mesmo como “Senhor do sábado” uma demonstração
definitiva, inquestionável, de que os
costumes e os mandamentos culturais não O jugulavam?
A condenação do
legalismo exterior, apontando o pecado já na raiz do pensamento e do desejo, é
outra evidência do constante enfrentamento com a cultura da época.
E, por fim, não podemos esquecer igualmente a ação de
graças ao Pai por se revelar aos pequenos e aos simples. Não aos detentores
de “status”, que ocupavam os primeiros lugares nos atos públicos ou privados.
Terceiro, que Ele não se submeteu a outros aspectos é manifesto.
Convocou homens sem currículo e sem diplomas, contrariando os critérios
esperados para a época. Entre os chamados não se conumera escriba algum. Nenhum
doutor da lei. A casta sacerdotal judaica não foi sequer consultada para
obtenção de apoio à grande virada neotestamentária
Perceba-se. Nenhuma
forma de “marketing” da época foi utilizada. Ao contrário. A plataforma do
Senhor era culturalmente apavorantes. Vejam-se Mt 8,20 e Lc 9,58. Lá está: “As
raposas têm suas tocas. As aves do céu, seu ninhos. O Filho do Homem não tem
onde reclinar a cabeça”. E mais. Anuncia que os convocados seriam
perseguidos, torturados e mortos. Entretanto, o chamado, o convite, tinha a
forma de um imperativo. Ele simplesmente dizia: Vem e segue-me. Nenhuma
promessa de “status”” neste mundo nosso. Neste mundo do dinheiro, do poder, da
honra e do prazer. Mas a convocação lacônica era quase irresistível.
Quarto, mais especificamente, no que diz com o objeto destes
registros, qual o agir do Senhor em relação à mulher?
É conhecida a condição da mulher,
naquele tempo. Excluída de qualquer participação pública, a mulher era
culturalmente marginalizada. Para os escribas era até tipificação de conduta
vergonhosa conversar com uma mulher na via pública.
O Senhor rompeu esse cinturão
cultural. Pregou de cidade em cidade, de povoado em povoado, acompanhado por
discípulos, entre os quais várias senhoras. A mãe de Tiago e João, Maria esposa
de Cléofas, por exemplo, e tantas outras. Nunca deixou de falar em público com
alguém por ser mulher. Não excetuou nem a Samaritana, para espanto dos próprios
discípulos.
*
* *
É de ver que a hipótese cultural se
esboroa e quebra ante a realidade. O Senhor inaugurou o tempo da Aliança Nova.
Isto está bem demarcado já na era
apostólica. Recordo uma proclamação de Paulo que decide, na perspectiva da fé:
“Não há mais judeus nem gregos. Não há escravos nem livres. Nem homem nem
mulher. Todos vós sois um em Cristo Jesus”. (Gal. 3,28).
De conseguinte, quando Paulo e toda a
Igreja nascente limitam o ministério ordenado ao termo masculino do binômio
humano, não o fazem por imposições culturais. O binômio, como se lê, na Carta
aos Gálatas, convertera-se na unidade de um binômio de reciprocidade, pela
força da graça redentora e do destino único da ressurreição.
Se discriminações culturais ocorreram na
vida social das comunidades eclesiais, nunca se impuseram no plano da fé e da graça. Com Paulo a Igreja sempre
proclamou que todos são “um em Cristo Jesus” (Gl 3,28).
Quando Paulo determinou que Tito e
Timóteo ordenassem varões é pelo fato de que recebeu isso do Senhor,
diretamente ou através de Pedro e das outras “colunas.” Especialmente, através
de Pedro.
Não esqueçamos que Paulo, após algum
tempo de pregação, foi a Jerusalém para ver Pedro e permaneceu junto a ele meio
mês. É o que nos conta em carta aos
gálatas (Gl 1,18). Ali, escrevendo em grego, usa a forma verbal “historésai Kephan”. “Ver
Céfas”. Ver Pedro, a Rocha. “Historésai” é um ver por motivo
singular. Por uma necessidade interior de conferir com ele tudo quanto começara
a pregar. “Historésai” sinaliza
busca de informação. Necessidade de ver para perguntar, contar, descrever, “abrir o
coração”. Pedro só pode ter confirmado a verdade de que o Senhor reservara o
ministério ordenado ao homem, como serviço ao seu Povo, não como privilégio.
Foi isso que Paulo passou a Tito, a Timóteo e a todos quantos o ouviram e
seguiram.
Mais. Não há como falar em discriminação da mulher na
reserva da ordenação ao termo masculino do binômio humano, quando se vê a
Igreja aclamar uma mulher como a mais perfeita e santa entre todos os homens, “viri
et mulieres”.
Quando a Igreja aclama uma mulher como Senhora dos anjos e
dos homens, não pode julgar o termo feminino do binômio humano como inferior ao
termo masculino. Quando aponta uma mulher como o mais perfeito reflexo da glória
de Deus, demonstra que no horizonte da fé e da graça não se pode admitir
discriminação alguma.
* * *
Para a Igreja, a santidade e a participação viva e vivificante na
vida eclesial não se medem pelo ingresso ou não no ministério ordenado.
Medem-se pela disponibilidade em servir, pela doação de si mesmo ao serviço dos
irmãos, pela humildade e pelo amor. Pela fidelidade à fé recebida na origem,
pela coerência da vida com a fé proclamada. Pela vida de comunhão com o Senhor.
Não pelo reconhecimento traduzido em desempenho de funções.
Vale reiterar. Ninguém tem direito à
ordenação. Nem o homem nem a mulher. Quem se julga com direitos ao ministério
ordenado já está a demonstrar a própria incapacidade para recebê-lo. Não foi a Igreja, não foi a comunidade nem poder
humano algum que instituiu o Sacramento da Ordem. Foi o Senhor. E foi Ele quem
convocou somente homens para a ordenação. Nem o Bispo de Roma nem o Colegiado
de todos os Bispos tem poder para alterar ou cancelar o que diz com instituição
divina da Igreja. Foi o que disse Pedro pela boca de João Paulo, em sentença
definitiva.