segunda-feira, 18 de novembro de 2013



Revista Cultura e Fé, n° 122 – 2008
Eno Dias de Castro
enodiasdecastro@gmail.com

 

                           A IGREJA EM DÍVIDA?

 Mesmo após a Ordinatio Sacerdotalis continuam não poucos presbíteros a proclamar, até em manifestação impressa, que a Igreja tem uma dívida pendente para com as mulheres, por não lhes ter propiciado, em dois mil anos de existência, acesso ao ministério ordenado.
Na minha limitação de leigo, peço vênia para deles discordar. Uma dívida, mesmo quando metafórica, tem como pressuposto um direito. No caso, o pressuposto seria o direito ao ministério ordenado.
Entretanto, é consabido que o acesso ao ministério ordenado não é um direito. Dom, gratuidade pura, o ministério ordenado não pode ser objeto de reivindicações. Ninguém tem direito a ele. Nem o homem nem a mulher.
Quem convoca para esse ministério é o Senhor. Foi Ele quem o instituiu e foi Ele quem convocou homens e não mulheres para exercê-lo “in persona eius”. Por que agiu assim não sei. Foi desígnio seu. Ele é o Senhor e Redentor nosso. A Igreja é dEle. É a Fundação dEle.
O ministério ordenado é um dom ao Povo de Deus. Um serviço. Não um direito. Muito menos denotação de “status”. Reivindicá-lo para si ou para determinado segmento parece-me equívoco espesso. A compreensão neotestamentária da vida, no Povo de Deus, desautoriza reivindicação de funções.
Lembro Paulo, em Ef 4,11-12: “(...) kai autós édoken”. E “Ele próprio deu, constituiu ministros a quem quis”, segundo seus desígnios, “para a obra do ministério” e construção de seu Povo. Se convocou somente um dos termos do binômio humano, foi desígnio seu. O Senhor convoca para esse ministério a quem quer. E convoca para servir. Não para autoafirmação de um dos termos do binômio “vir et mulier.
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  Se as duas partes da espécie constituem um binômio, constituem-no como binômio de reciprocidade. Não de antinomia ou dependência que subjuga e algema. Desenha-se um binômio de interdependência recíproca, para a realização de um destino único, idêntico. De um projeto de plenitude para todos. Se o Senhor chamou apenas homens, varões, para o ministério ordenado, foi decisão sua.
Não sei, já disse, por que dispôs assim. Alguns arriscam razões para esse agir do Senhor. De minha parte, confesso que não ouso. E não ouso pelo simples fato de que não assino os argumentos de razão humana apresentados pelos tratadistas para justificar a escolha de um dos termos do binômio.
Na verdade, humanamente falando, penso que as mulheres discípulas, à época, foram muito mais dignas para a convocação. Todas ficaram firmes, de pé, junto à cruz, quando Jesus foi crucificado. Do grupo de discípulos homens, apenas um ficou. Os demais, ao que se sabe, fugiram.
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 Os cobradores da suposta dívida, despercebem o fundamental. E o fundamental, no caso, é o fato de que a Igreja não é dona dos sacramentos. É apenas depositária e administradora.
Isso não é novidade. Foi objeto de proclamação de Pio XII, em 1947.  Está lá, sem rodeios, na Constituição Apostólica “Sacramentum Ordinis”.   Para não deixar dúvidas o Sucessor de Pedro invocou as fontes da Revelação e o Concílio de Trento.
O texto: “A Igreja não tem poder algum sobre a substância dos sacramentos, quer dizer, sobre aquilo  que Cristo Senhor, conforme o testemunho das fontes da Revelação, quis fosse mantido no sinal sacramental.” (AAS,  40, 7, 1948).
Quem quiser conferir pode também abrir o Denzinger, n° 3857. Lá está o texto da encíclica.
Mais tarde a declaração “Inter insignores”, da Congregação para a Doutrina da Fé (1976), aprovada por Paulo VI, sintetizou a matéria em tela, dizendo lapidarmente:Quae Christus et Apostoli fecerunt normae perpetuae sunt”. O que Cristo e os Apóstolos fizeram constitui norma para sempre, em tudo o que diz com o fundamental da fé e dos sacramentos.
Os integrantes da CDF tinham na memória um testemunho do ano 96. Testemunho do terceiro sucessor de Pedro, Clemente Romano, companheiro dos Apóstolos,  homem da era apostólica portanto.

Clemente testemunhou da Igreja de Roma para a Igreja de Corinto, que os Apóstolos, “instruídos pelo Senhor, tendo conhecimento das futuras contestações estabeleceram como sucessores homens, varões, comprovados, para os sucederem em seu ministério” (Carta aos Coríntios, 44, ed. Vozes, ps. 44/45, trad. do grego por P.E. Arns).
Por sobre tudo isto, temos, de 1994, a sentença definitiva de João Paulo II, na Carta Apostólica  Ordinatio Sacerdotalis”, dirigida a todos os bispos da Igreja Católica:  “ … Portanto, para ser excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude de meu ministério de confirmar os irmãos (Luc 22,23), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal a mulheres e que esta sentença deve ser considerada definitiva para todos os fiéis católicos”.     
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A Igreja não pode inventar, mutilar ou cancelar coisa alguma que diga com a substância da fé e dos sacramentos. Nem o múnus petrino é o de representar uma média de opiniões ou a opinião de maiorias eventuais. Não pode o Sucessor de Pedro sujeitar-se a pressões lobistas, no que respeita à fé. O que vincula a Igreja é a verdade recebida do Senhor e dos Apóstolos. Cumpre-lhe vivê-la e ensiná-la sem transações ou manipulações. Ainda que para tanto se veja ante o martírio. Essa força ela tem e terá sempre. Não pelo valor dos homens investidos no poder-serviço de governo, mas pela garantia da promessa que o Apóstolo Mateus gravou em seu evangelho (Mt 16,18).
Na sentença de João Paulo, antes referida, estamos diante da explicitação de uma verdade que integra o Depósito da Fé Apostólica. Verdade que à Igreja só cabe guardar e transmitir, sem faculdade alguma de cancelá-la, encurtá-las o contorná-la.
 O Bispo de Roma, sucessor de Pedro, não propõe nenhuma formulação dogmática nova. Confirma somente uma certeza que foi constantemente afirmada e vivida pela Fundação do Senhor, desde as origens. É declaração de uma doutrina recebida como definitiva na própria origem, não reformável.
Não se trata de ato meramente prudencial nem de hipótese mais provável. Menos ainda uma disposição disciplinar. Deu-se forma concreta, explícita a uma certeza vivida pela Igreja desde o princípio e que, agora, alguns quiseram abalar sem base em dúvida verdadeira.
É ato de magistério não propriamente definidor, mas confirmatório de uma compreensão preexistente da fé comum recebida desde a era apostólica. Ato de magistério autêntico, que se conumera entre aqueles garantidos pela promessa do Senhor a Pedro (Mt 16, 18).

O que João Paulo defendeu foi o que recebemos na origem, como atestam também as Igrejas  que se afastaram da comunhão com a Sé de Roma, mas  mantiveram a apostolicidade, pela ordenação episcopal válida.
Assim foi na Igreja indivisa dos três primeiros séculos. Assim permaneceram os segmentos separados, nos quais continuou a correr a seiva da Sucessão Apostólica, porque pastoreados por homens devidamente ordenados, marcados pela ordenação episcopal  verdadeira.
É o que se verifica nas Igrejas pré-calcedonianas , separadas no séc.V. O mesmo vale para o espesso segmento denominado Igreja Ortodoxa, separado no séc. XI. Nelas não se obstruiu  o canal estabelecido pela “imposição das mãos”,  pelo qual a “gratia successionis” mana dos poços eternos da Trindade Santíssima. Não se cancelou nem se distorceu nelas o que foi recebido na origem, quanto ao Sacramento da Ordem. Continuaram, sob esse aspecto, em consonância com a Católica, na qual induvidosamente subsiste a Fundação do Senhor.
O Patriarca Mar Dinkha IV, da Igreja Assíria do Oriente, demonstrou isso na visita à Sé de Roma, em novembro de 1994. O mesmo se verificou, em junho de 1995, quando Bartolomeu I, Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, também visitou o Sucessor de Pedro.

A Tradição Apostólica, sem qualquer hiato na Igreja Católica e naquelas Igrejas separadas que mantiveram a sucessão de bispos verdadeiros, aponta para a falácia da hipótese de condicionamento cultural na reserva do ministério ordenado ao homem, varão.
Os bispos, por sua ordenação sacramental válida, e pela tradição eclesial recebida mediante a ordenação, marcam a continuidade e unidade com a origem. Relembre-se, com Ratzinger, que o conteúdo da sucessão apostólica é a tradição e a forma é o Sacramento da Ordem.
A continuidade com o Colegiado Apostólico dos Doze é fator essencial. Por ele se identificava, claramente, já no séc. II, a “successio apostolica”. Sucessão apostólica na qual se atesta, constantemente, a recepção da reserva do Sacramento da Ordem ao varão como disposição do Senhor. Disposição encarnada na história pelos Doze e por eles transmitida à Igreja primitiva. Isso é o fato. Fato que por si só já constitui garantia contra a mera hipótese do condicionamento cultural machista.
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A hipótese de submissão à cultura da época por parte do Senhor e dos Apóstolos não se sustenta. A realidade neotestamentária a elimina.

Primeiro, os Apóstolos constituíram sucessores e determinaram que estes constituíssem, como tais, outros homens “aprovados. Homens. Especificamente, varões, “andres”, “viri”, para o fim de os sucederem.  Tal como vemos em Clemente Romano, Irineu e Justino, respectivamente testemunhas dos sécs. I e II. Por exemplo. E, marque-se bem, fizeram isso de dentro da cultura grega e latina, nas quais era comum a figura das sacerdotizas. Portanto, ao ensinarem isso, essas testemunhas da Igreja dos primeiros tempos não o fizeram jugulados por cultura que não admitia mulheres com funções no culto religioso.
Segundo, o Senhor, por sua vez, não se sujeitou a algemas culturais em nenhum outro aspecto da escolha dos Doze. Por que somente se teria sujeitado  ao escolher apenas varões para o ministério ordenado?
Lembre-se. Em todos os patamares o Senhor agiu com independência  absoluta, revelando uma autoridade única. Sem precedentes. Reiterava, com freqüência: “Foi dito, Eu porém vos digo”.
Mais do que isso, não é a proclamação de Si Mesmo como “Senhor do sábado” uma demonstração definitiva, inquestionável,  de que os costumes e os mandamentos culturais não O jugulavam?
A condenação do legalismo exterior, apontando o pecado já na raiz do pensamento e do desejo, é outra evidência do constante enfrentamento com a cultura da época.
E, por fim,  não podemos esquecer igualmente a ação de graças ao Pai por se revelar aos pequenos e aos simples. Não aos detentores de “status”, que ocupavam os primeiros lugares nos atos públicos ou privados.

Terceiro, que Ele não se submeteu a outros aspectos é manifesto. Convocou homens sem currículo e sem diplomas, contrariando os critérios esperados para a época. Entre os chamados não se conumera escriba algum. Nenhum doutor da lei. A casta sacerdotal judaica não foi sequer consultada para obtenção de apoio à grande virada neotestamentária
Perceba-se. Nenhuma forma de “marketing” da época foi utilizada. Ao contrário. A plataforma do Senhor era culturalmente apavorantes. Vejam-se Mt 8,20 e Lc 9,58. Lá está: “As raposas têm suas tocas. As aves do céu, seu ninhos. O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. E mais. Anuncia que os convocados seriam perseguidos, torturados e mortos. Entretanto, o chamado, o convite, tinha a forma de um imperativo. Ele simplesmente dizia: Vem e segue-me. Nenhuma promessa de “status”” neste mundo nosso. Neste mundo do dinheiro, do poder, da honra e do prazer. Mas a convocação lacônica era quase irresistível.

Quarto, mais especificamente, no que diz com o objeto destes registros, qual o agir do Senhor em relação à mulher?
É conhecida a condição da mulher, naquele tempo. Excluída de qualquer participação pública, a mulher era culturalmente marginalizada. Para os escribas era até tipificação de conduta vergonhosa conversar com uma mulher na via pública.
O Senhor rompeu esse cinturão cultural. Pregou de cidade em cidade, de povoado em povoado, acompanhado por discípulos, entre os quais várias senhoras. A mãe de Tiago e João, Maria esposa de Cléofas, por exemplo, e tantas outras. Nunca deixou de falar em público com alguém por ser mulher. Não excetuou nem a Samaritana, para espanto dos próprios discípulos.
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É de ver que a hipótese cultural  se esboroa e quebra ante a realidade. O Senhor inaugurou o tempo da Aliança Nova.
Isto está bem demarcado já na era apostólica. Recordo uma proclamação de Paulo que decide, na perspectiva da fé: “Não há mais judeus nem gregos. Não há escravos nem livres. Nem homem nem mulher. Todos vós sois um em Cristo Jesus”. (Gal. 3,28).
De conseguinte, quando Paulo e toda a Igreja nascente limitam o ministério ordenado ao termo masculino do binômio humano, não o fazem por imposições culturais. O binômio, como se lê, na Carta aos Gálatas, convertera-se na unidade de um binômio de reciprocidade, pela força da graça redentora e do destino único da ressurreição.
Se discriminações culturais ocorreram  na vida social das comunidades eclesiais, nunca se impuseram no plano da fé  e da graça. Com Paulo a Igreja sempre proclamou que todos são “um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). 
Quando Paulo determinou que Tito e Timóteo ordenassem varões é pelo fato de que recebeu isso do Senhor, diretamente ou através de Pedro e das outras “colunas.” Especialmente, através de Pedro.
Não esqueçamos que Paulo, após algum tempo de pregação, foi a Jerusalém para ver Pedro e permaneceu junto a ele meio mês. É o que  nos conta em carta aos gálatas (Gl 1,18). Ali, escrevendo em grego, usa a forma verbal  historésai Kephan”.  “Ver  Céfas”. Ver  Pedro, a Rocha.  Historésai” é um ver por motivo singular. Por uma necessidade interior de conferir com ele tudo quanto começara a pregar. “Historésai” sinaliza  busca de informação. Necessidade de ver para  perguntar, contar, descrever, “abrir o coração”. Pedro só pode ter confirmado a verdade de que o Senhor reservara o ministério ordenado ao homem, como serviço ao seu Povo, não como privilégio. Foi isso que Paulo passou a Tito, a Timóteo e a todos quantos o ouviram e seguiram.
Mais. Não há como falar em discriminação da mulher na reserva da ordenação ao termo masculino do binômio humano, quando se vê a Igreja aclamar uma mulher como a mais perfeita e santa entre todos os homens, “viri et mulieres”. 
Quando a Igreja  aclama uma mulher como Senhora dos anjos e dos homens, não pode julgar o termo feminino do binômio humano como inferior ao termo masculino. Quando aponta uma mulher como o mais perfeito reflexo da glória de Deus, demonstra que no horizonte da fé e da graça não se pode admitir discriminação alguma.
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Para a Igreja, a santidade e a participação viva e vivificante na vida eclesial não se medem pelo ingresso ou não no ministério ordenado. Medem-se pela disponibilidade em servir, pela doação de si mesmo ao serviço dos irmãos, pela humildade e pelo amor. Pela fidelidade à fé recebida na origem, pela coerência da vida com a fé proclamada. Pela vida de comunhão com o Senhor. Não pelo reconhecimento traduzido em desempenho de funções.

Vale reiterar. Ninguém tem direito à ordenação. Nem o homem nem a mulher. Quem se julga com direitos ao ministério ordenado já está a demonstrar a própria incapacidade para recebê-lo. Não foi a Igreja, não foi a comunidade nem poder humano algum que instituiu o Sacramento da Ordem. Foi o Senhor. E foi Ele quem convocou somente homens para a ordenação. Nem o Bispo de Roma nem o Colegiado de todos os Bispos tem poder para alterar ou cancelar o que diz com instituição divina da Igreja. Foi o que disse Pedro pela boca de João Paulo, em sentença definitiva.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Revista Cultura e Fé, n. 84/1999
Eno Dias de Castro



UMA QUESTÃO ATUAL DE ESCATOLOGIA

Neste século o “éschaton” voltou ao lugar teológico que lhe cabe. A Escatologia deixou de ser um dos últimos capítulos dos tratados teológicos. Empolgou a Teologia.
Um sopro do Espírito? Talvez. Afinal, o Senhor nosso Deus é o “Éschatos”, o Extremo último, o Ômega, a Plenitude para a qual tende o ser humano. Ele é a fonte e o sentido da vida. A Salvação do homem. O Reino. A Escatologia é, no conjunto, a doutrina da verdade salvífica. Tem de estar presente em todo o território teológico. É ela que marca e demarca esse território.
Em meio ao sopro renovador, surgiram torvelinhos e borrascas. Até furacão. No torvelinho de questões suscitadas, punham em debate a própria Ressurreição do Senhor e, de conseqüência, a nossa.
Paulo VI, vigilante, de pé, sem medo, defendia a fé recebida dos Doze. Alertava, orientava e confirmava os irmãos. Na sua fragilidade física parecia um gigante enfrentando o olho do furacão.
No simpósio internacional “Et ressurrexit tertia die”, de 1968, largou os trabalhos escritos e bradou para a Igreja inteira, definindo limites: “Se não conservamos a fé no fato empírico da experiência dos Apóstolos sobre a ressurreição, transformamos o Cristianismo numa gnose”!
Enquanto o Sucessor de Pedro enfrentava o erro fundamental desfigurador da Ressurreição, agregavam-se outros debates de diversos segmentos teológicos. Inclusive aquele dos teólogos da ressurreição na morte. É sobre a escatologia desse segmento, que faço estes registros.
Os teólogos da ressurreição na morte definem a visão da problemática escatológica muito claramente, dizendo: A grande questão não é o fato da ressurreição de Cristo, nem se Deus ressuscitará o homem inteiro, com sua dimensão corporal. Isto é indiscutível para nossa fé. A questão é outra. É a questão do “quando ocorrerá” e do “em que consistirá” a ressurreição corporal.
A resposta que dão à questão assim formulada é a de que a ressurreição acontece no momento mesmo da morte. Na morte morre o homem todo. Morre inteiramente. Nada de alma imortal separada do corpo na morte e sujeita a juízo particular. Na morte acontecem o juízo final e a ressurreição. Na morte de cada um. E o que ressuscita não é o corpo é a “corporeidade”.

I
A onda canceladora da imortalidade da alma avançou rápida e cresceu. Nós do povo nem percebemos o avanço.
Fui despertado, comecei a dar-me conta, com atraso, quando há duas décadas percebi que a palavra alma estava sendo banida das traduções da Escritura, em diversos versículos nos quais sempre havia figurado. Em exemplo, aponto Mt 16,26; Mc 8,36; Lc 21,19. Onde não conseguiam mudar, vinha nota de rodapé, “esclarecendo” que alma queria dizer pessoa (Bíblia de Jerusalém, 1Pd 1,9, nota “f “- Paulinas 1975).
Só avaliei a dimensão da tentativa de cancelamento do conceito cristão de alma , quando deparei com o texto litúrgico de uma Santa Missa por um amigo falecido (de corpo presente). Pelo texto impresso se rezava, ipsis verbis, para que o falecido “tivesse tido uma ressurreição feliz”. Só não sei porque se pedia que “tivesse tido”. A situação do “ressuscitado”, segundo a nova leitura da escatologia, já estava decidida no momento mesmo da morte. Quando se pede, tem-se em vista o futuro aberto. O passado esta fechado. Não se muda. A não ser que se entenda que Deus dê a graça da “ressurreição feliz” face à intercessão pós-morte. Entretanto, no caso de tal entendimento, parece que a formulação deveria ser outra.
O corpo do meu amigo estava ali, sem vida, ante os olhos de todos, e se dizia que tinha ressuscitado e se postulava tivesse tido uma ressurreição feliz. O comentarista ficou surpreendido, mas manteve a calma. Alguns dos participantes, confusos, se entreolharam. A maioria não se deu conta. Ou seus ouvidos já se haviam acostumado àquela fórmula. Soava-lhes tranqüila. Como expressão da fé.
Então percebi como aquilo estava sendo orquestrado de dentro de estruturas fundas da própria Igreja. “Lex orandi, lex credendi”. A própria oração oficial fora contaminada e a contaminação se manifestava como “lei da fé”.
A nova leitura escatológica da fé cristã avançara rápida. A imortalidade da alma humana e o juízo particular estavam sendo negados no próprio ato das exéquias.
* * *
Quando percebi o fato, dei início a estes registros, mas desisti. Desisti, porque verifiquei que o folheto com o texto referido havia sido tirado de circulação. Supus que algum comando hierárquico, consciente do múnus magisterial, houvesse adotado providências. Entretanto, fui surpreendido novamente, em outro ato fúnebre. O comentarista, em introdução livre, reverenciando a memória do falecido, afirmou, com voz clara, forte e convicta: Meus irmãos e minhas irmãs, este nosso irmão já ressuscitou.
A afirmação me renovou o mal-estar que experimentara, nas exéquias do meu outro amigo. Quem afirmava a tese da ressurreição no momento mesmo da morte era um seminarista. E o fazia na presença de seu bispo.
Felizmente, o ato próprio de encomendação repôs a doutrina e a fé da origem. Suplicava-se ao Senhor, nas orações daquele ato, que, em sua misericórdia, recebesse a alma do falecido já agora e lhe desse a ressurreição gloriosa do corpo no Juízo Final, no último dia.
Experimentei a confiança e a alegria daquela oração. Aquilo era o que ficaria nos ouvidos dos presentes, pensei.
Entretanto, o fato reavivou-me a preocupação com a questão. Estudante de uma casa de formação sacerdotal estava imbuído da tese de que a ressurreição acontece na morte de cada um. Isso me levou a, finalmente, retomar estes registros. A questão continua viva, aqui. No extremo sul do Brasil.


II
Os teólogos da ressurreição na morte entendem que não seria científico nem bíblico o esquema “corpo-alma”. O homem seria um ser uno. Uma unidade indivisível. Nada de alma imortal, separada do corpo na morte. Com a morte do corpo, morre inteiramente o homem. O esquema “corpo-alma”, integrante da doutrina da Igreja, teria sido infiltração de filosofia grega. Dualismo platônico.
Platonismo. Dualismo. Que platonismo? Que dualismo?
O termo dualismo está sujeito a muitas leituras. A Comissão Internacional de Teologia sugere o uso da palavra dualidade, para evitar evocações superficiais do dualismo platônico, com as confusões conseqüentes.
Primeiro, pela fé da Igreja, o estado de sobrevivência da alma humana separada do corpo na morte não é definitivo. É intermédio, transitório, ordenado ao termo final da ressurreição. Por esse dado fundamental a antropologia cristã aparta-se abissalmente da antropologia platônica.
Por sobre este aspecto decisivo, há também o dado de que o dualismo platônico considerava a alma como o verdadeiro homem, enquanto o corpo seria uma prisão detestável. Para o platonismo a ressurreição seria um retorno abominável ao cárcere. Confundiam, inclusive, ressuscitar com reviver.
A Igreja não tomou da antigüidade a resposta que dá à questão em tela. Sua resposta está na perspectiva cristológica. Ao bom ladrão o Senhor, no momento de sua morte, garantiu: Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso. E quanto ao próprio Senhor, sabemos que ressuscitou ao terceiro dia, deixando o sepulcro vazio. O bom ladrão morreu no mesmo dia em que o Senhor foi morto. Seu corpo foi jogado na vala comum, mas, no mesmo dia, ele, o bom ladrão, passou a viver na comunhão com Deus (“en to met’emou ese en to Paradeiso”, no texto grego de Lucas, 23,43). No mesmo dia o corpo do Senhor foi enterrado em um sepulcro novo e só ao terceiro dia após a morte seu corpo ressuscitou, deixando vazio o sepulcro. Está, aí, na Escritura, a sobrevivência da alma no perecimento do corpo. Da alma em que subsistia o “eu” do bom ladrão.
A alma separa-se do corpo, na morte. Isso, entretanto, não implica desfazimento de sua relação com o corpo. A alegria da certeza de que seu corpo ressuscitará e a plenitude da nova compreensão da vida em Deus afastam qualquer sofrimento. Mais. Tornam-se fonte de alegria e paz. O cristão não desvaloriza o corpo. Deve tê-lo como templo do Espírito Santo, destinado à comunhão com o Senhor seu Deus, na glória da Pátria Trinitária, na ressurreição do último dia. Deve zelar por ele e defendê-lo contra as agressões injustas, em si e em todos os homens. Há até mesmo um mandamento divino para protegê-lo. A Igreja o defende desde o primeiro instante da concepção, momento em que o Senhor nosso Deus lhe infunde a alma inteligente, para que, como forma do corpo, lhe imprima a dignidade de pessoa, destinada à liberdade de filhos seus, criados à sua imagem e semelhança.

* * *

A realidade está aí. Negam muitos, com desenvoltura, um dado da fé recebida na origem.
Não sei bem desde quando começou a instalar-se o fato. Mas, penso que foi na segunda metade deste século XX. Agora, nas últimas décadas, a questão assume espessura impressionante, em versões mais sofisticadas.
Dizem os entendidos que essa atual pretensão tem predecessores salientes em Adolf Schlater (+1938) e Karl Stange, (+1959), teólogos protestantes. Apontam também Paul Althaus, outro teólogo protestante, que tratara a matéria anteriormente.

III
O que ocorre tão pacificamente parece-me um assalto por dentro.
O termo “assalto” pode parecer impróprio. Esclareço que não uso o termo pejorativa ou agressivamente. Quem assalta não é necessariamente um mal intencionado. Pode alguém planejar a derrubada de uma posição, imaginando-se com a obrigação de fazê-lo e fazê-lo discretamente, por métodos imaginados prudentes.
Suponho honestidade intelectual nos que tentam dar outra versão à doutrina bimilenar da Igreja. Eles não intencionam a destruição dos conteúdos. Pensam que os esquemas, nos quais foram sedimentados os conteúdos da fé, são meramente culturais. Querem mudar aquilo que consideram ser apenas esquema simplificador.
Reconhecer-lhes essa condição, no entanto, não nos desobriga de opor-nos, pois, nós, povo cristão, continuamos crendo que a unidade composta de corpo e alma imortal não se reduz a mero esquema cultural. Constitui a ontologia do homem. Para nós, a imortalidade da alma é matéria integrante da Revelação do Testamento Novo. E temos que esse dado da fé já fora explicitado induvidosamente nos últimos períodos do Antigo Testamento (revelação a caminho).
Face ao que recebemos na fé apostólica, referente à alma, à sua imortalidade e ao “juízo particular” (escatologia intermédia ou próxima), as teses da ressurreição no momento mesmo da morte não podem ser homologadas.
* * *
Falei em assalto à fé. Para mim, pela rapidez e eficiência, com que essa tese permeou algumas estruturas da Igreja, desenha-se um assalto.
Um assalto feito assim, por dentro, sem ruído, por tomadas de posições estratégicas, capilarizando as consciências, é mais eficiente do que qualquer agressão aberta. Grande parte do povo vai assimilando e, quando se der conta, já não se espantará nem oporá resistência.
Não se falará mais em “alma” e, obviamente, com o tempo, a fé na sua sobrevivência se extinguirá. Esse parece o plano. Mas, se esse é o plano, enganam-se. Há uma promessa do Senhor com a qual não contam. As portas do erro não prevalecerão. Restará sempre um pequeno resto, reduto do “sensus fidelium”, firme na fé apostólica.
* * *
Sem mordência, verifico, em algumas obras, que teólogos da nova leitura começam a falar como vitoriosos e purificadores da fé. Consideram-se senhores da situação.
Alcançaram posições relevantes. Conseguiram tomar alguns postos decisivos para sua estratégia. Deram certo cunho de cidadania à teoria da morte total (Ganztod). É o velho tanatopsiquismo voltando. Exemplo? O “Missale Romanum”, de 1970. Excluíram dele a palavra alma, no texto relativo às exéquias. Isso facilitou a impressão do folheto mencionado ao início. Mais. Imprimiram nele aquele prefácio ambíguo: “Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível”.
A ambigüidade do texto é patente. Está em que sugere ser-nos dado um outro corpo imperecível, tão logo desfeito o corpo mortal. O texto foi reproduzido no Catecismo da Igreja Católica, mas num contexto em que se afirma a salvação da alma no estado de espera da futura ressurreição. Ali, naquele contexto, embora criticável sua inserção, não causa equívoco. Pelo contrário. Retira-lhe a ambigüidade. Entretanto, fora daquele contexto, funciona como uma cunha da nova escatologia. Confirma-se, aí, a estratégia do assalto por dentro.
Eles admitem que a “manualística” continuará talvez, por certo tempo, a usar o termo “alma”. Mas esperam que, banido dos acampamentos da exegese e da teologia, será eliminado da pregação e da catequese, vindo a ser extirpado, por fim, dos manuais.
Palestras, entrevistas, livros difundidos por livrarias católicas e aulas de teologia consolidam o domínio da “nova leitura da fé”. A mídia abre-lhe as portas. Haverá debates, como o que ouvi, no ano passado, num canal de televisão. O que deveria ser debate transformou-se em aula televisionada. O teólogo leigo convidado, passou todo o tempo a idéia de que o homem morre todo e ressuscita no instante da morte. Os demais debatedores, embora católicos, não tiveram condições de competir com o professor.
Mergulhado na “penumbra teológica”, parte do povo ouvinte, sem possibilidade de discernir o objeto e o alcance das afirmações, já foi dopado. Até que ponto não sei.
IV
Não vou analisar, uma por uma, as alegações em que pretendem fundar-se os teólogos da mortalidade da alma e da ressurreição na morte. Tomo um caminho curto e singelo. Relembrarei qual é a fé que a Igreja tem por recebida na origem, com a citação ou a indicação de prova documental induvidosa. Isso feito, cada um poderá avaliar a nova leitura escatológica.
* * *
Transcrevo, primeiro, uma síntese constante da introdução de documento da Comissão Internacional de Teologia, intitulado A Esperança Cristã na Ressurreição. Documento aprovado na sessão plenária de 1990 e editado com a aprovação do Cardeal Joseph Ratzinger, Presidente da Comissão, nos termos dos estatutos da mesma Comissão.
Utilizo a tradução da Editora Vozes, de 1994:
“A resposta cristã às perplexidades do homem atual, e do homem de qualquer tempo, tem a Cristo ressuscitado como fundamento e está contida na esperança da gloriosa ressurreição futura de todos os que são de Cristo, a qual se realizará à imagem de sua própria ressurreição: ‘Assim como trazemos a imagem do Adão terreno, traremos também a imagem do (Adão) celestial’ (1Cor 15,49), isto é, do próprio Cristo ressuscitado. A nossa ressurreição será um acontecimento eclesial em conexão com a parusia do Senhor, quando se completar o número dos irmãos (cf. Ap 6,11). Entretanto, há, imediatamente depois da morte, uma comunhão dos bem-aventurados com Cristo ressuscitado (céu), a qual pressupõe uma purificação escatológica (purgatório) caso seja necessária. A comunhão com Cristo ressuscitado, prévia à nossa ressurreição final, implica uma determinada concepção antropológica (corpo-alma) e uma visão da morte especificamente cristãs. É em Cristo ressuscitado e por ele que se entende a ‘comunicação de bens’ ( cf. Vaticano II, LG, 49), existente entre os membros da Igreja, da qual o Senhor ressuscitado é a Cabeça” (ps. 13/14).
Nesse texto introdutório, a Comissão Internacional de Teologia resume, em termos muito cuidados, o ensinamento básico da Igreja de todos os tempos sobre o horizonte escatológico. Anote-se que a Comissão Teológica afirma sem reticências que essa é a concepção especificamente cristã.
* * *
A síntese transcrita, exprime, com cuidado teológico, aquilo que recebemos na fé batismal.
Podemos vazar a síntese da Comissão, em outros termos.
Por exemplo:
- A resposta cristã às interrogações sobre o fim da história fundamenta-se no Senhor Jesus Cristo ressuscitado. Está contida na fé e na esperança da ressurreição final e gloriosa de todos os que são de Cristo (os que vivem na amizade de Deus). A ressurreição não será acontecimento isolado, mas um acontecimento eclesial.
- Os que morrem, antes desse acontecimento eclesial, se purificados de todos os seus pecados, entram imediatamente na felicidade da comunhão com Cristo (céu), ou passam primeiro por uma purificação escatológica (purgatório), se necessária.
A comunhão com Cristo ressuscitado, prévia à nossa ressurreição, implica uma determinada concepção antropológica (corpo-alma), que torna viável a sobrevivência do homem, nessa comunhão, logo após a morte, antes da ressurreição do último dia.
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Isso é consabido. Essa foi sempre a fé da Igreja do Senhor.
Abra-se o “Catecismo da Igreja Católica”. Preliminarmente, veja-se o documento que ordena a publicação, para avaliar seu peso. No mérito, examine-se qual escatologia que ensina.
O documento é a Constituição Apostólica “Fidei depositum”, de 11 de outubro de 1992. Nele, o Sucessor de Pedro apresenta o Catecismo da Igreja Católica como norma para o ensino da fé.
Textualmente:
“O ‘Catecismo da Igreja Católica’, que aprovei no passado dia 25 de junho e cuja publicação ordeno em virtude da autoridade apostólica, é uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica, testemunhadas ou iluminadas pela Sagrada Escritura, pela Tradição apostólica e pelo Magistério da Igreja. Vejo-o como um instrumento (...) a serviço da comunhão eclesial e como uma norma segura para o ensino da fé. (...).
A aprovação e a publicação do ‘Catecismo da Igreja Católica’ constituem um serviço que o Sucessor de Pedro quer prestar (...): o serviço de sustentar e confirmar a fé de todos os discípulos do Senhor Jesus (cf. Lc 22,32), como também de reforçar os laços da unidade na mesma fé apostólica. (...) Este catecismo lhes é dado a fim de que sirva como texto de referência, seguro e autêntico, para o ensino da doutrina católica (...)”. (Ed. portuguesa, Vozes, Paulinas, Loyola e Ave Maria, ps. 10 e 11.)
Marque-se que o Sucessor de Pedro aprovou o Catecismo por força da autoridade apostólica, invocando o múnus petrino de confirmar os irmãos, fundado na Escritura (Lc 22,32) e na Tradição dos Apóstolos. Esse é o peso do conteúdo aprovado.
* * *
Portanto, no mérito, no conteúdo, o ensinamento escatológico do Catecismo reflete a fé da Igreja Católica e Apostólica. A palavra do Sucessor de Pedro, que se transcreveu, garante isso.
Dispenso-me da transcrição dos textos. Apenas os aponto. Estão sob os números marginais 362/368, 988/995, 1020/1050, com abundância de citações da Escritura, dos Santos Padres (Pais da Igreja), do Magistério e dos Santos. Reafirma a fé apostólica.
Nos textos indicados mais uma vez se afirma o conteúdo do ensinamento da Igreja, desde a origem.
O ser humano é uma unidade composta, constituído de corpo e alma inteligente. Mantém que, na morte, acontece o juízo particular. A alma humana, imortal, com toda sua história e segundo sua história, salva-se ou se condena. Os salvos, se completamente justos e puros, entram na alegria eterna da Pátria Trinitária. Imediatamente, se completamente puro. Após uma purificação, se ainda necessária. Os outros, aqueles que repudiam a comunhão com seu Deus e Pai, que repelem o amor de Deus e dos irmãos, que optam contra o viver em Deus, assumem para sempre a crispação no ódio e no desespero da solidão sem fim.
A lição do Catecismo é a mesma que Bento XII recolheu da Tradição Apostólica e definiu pela Constituição dogmática “Benedictus Deus”, de 29 de janeiro de 1336.
O texto da definição de Bento XII:
“Por esta Constituição, a fim de valer para sempre, com a nossa autoridade apostólica definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as almas de todos os santos mortos antes da Paixão de Cristo (...) e de todos os outros fiéis mortos depois de receberem o santo Batismo de Cristo, nos quais não houve nada a purificar quando morreram (...) ou ainda, se houve ou há algo a purificar, quando, depois da sua morte tiverem acabado de fazê-lo, (...) antes mesmo da ressurreição nos seus corpos e do juízo geral, e isto desde a ascensão do Senhor e Salvador Jesus Cristo ao céu, estiveram, estão e estarão no Céu, no Reino dos Céus e no paraíso celeste com Cristo, admitidos na comunidade dos santos e dos anjos. Desde a paixão e a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, viram e vêem a essência divina com uma visão intuitiva e até face a face, sem mediação de nenhuma criatura” (DS 1000*).
É também o mesmo ensinamento que o Concílio Vaticano II repetiu, na Constituição pastoral Gaudium et Spes, 14, (Compêndio, 242).
Transcrevo:
“O homem, ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza em si mesmo, pela sua natureza corporal, os elementos do mundo material, os quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam livremente o Criador. (...) Não se engana o homem quando se reconhece superior às coisas corporais e se considera como algo mais do que simples parcela da cidade dos homens. Pela sua interioridade transcende o universo das coisas: tal é o conhecimento profundo quando reentra no seu interior, onde Deus, perscruta os corações, o espera, e onde, pessoalmente, sob o olhar do Senhor, decide do seu próximo destino. Ao reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e imortal, não se ilude com uma frágil fantasia, fruto apenas de condições físicas e sociais. Atinge, pelo contrário, a verdade profunda das coisas”.
O Catecismo também refere, em nota, o Credo do Povo de Deus de Paulo VI (1968).
Veja-se o tópico, objeto da nota:
“Cremos na vida eterna. Cremos que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo, quer se devam ainda purificar no Purgatório, quer sejam recebidas por Jesus no Paraíso, no mesmo instante em que deixam seus corpos, como sucedeu com o Bom Ladrão, formam o Povo de Deus, para além da morte, a qual será definitivamente vencida no dia da Ressurreição em que estas almas se reunirão aos seus corpos (tópico “Profissão de Fé”, p. 6 da tradução da Tipografia Poliglota Vaticana, editada por Edições Paulinas, no mesmo ano de 1968).
* * *
A fé ensinada pelo Catecismo é a Fé de Pedro. Nem preciso lembrar o Concílio de Latrão V (1512-1517), que condenou a tese aristotélica reduzida por Averroes, conforme a qual a alma humana individual seria mortal. Deixo de sinalar a reafirmação direta ou indireta da imortalidade da alma encontrada em diversos Concílios. Inclusive naqueles dos primeiros séculos. Não aponto o privilégio da Assunção da Mãe Bendita com corpo e alma, que é definição “ex cathedra”. Omito as indicações dos inúmeros pronunciamentos dos Sucessores de Pedro, através dos séculos, explícitos ou implícitos. Como o de Pio XII na encíclica Humani generis, de 1950 (DS 3896). Abstenho-me de apelar para a lição dos Santos Padres. A muitos deles recorre o Catecismo, sob os números apontados. Não invoco o testemunho dos mártires, desde Estêvão, e o culto que a Igreja lhes prestou conforme atesta a arqueologia. Calo, por enquanto, a lição dos santos, entre os quais os grandes místicos da história da Igreja, embora não me saia da memória, durante a digitação, a lição extraordinária de Catarina de Sena, que Paulo VI proclamou doutora da Igreja, em 1970, no auge dos debates sobre a Ressurreição.
* * *
Recordo, por fim, manifestação da Congregação para a Doutrina da Fé, emitida mais de vinte anos antes do Catecismo.
Fundada na Escritura, tendo bem presente a advertência de que não devemos ter medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma (Mt 10,28), aquela Congregação, na Carta Recentiores episcoporum Synodi, devidamente assinada pelo Cardeal Prefeito e pelo Secretário, documento não anônimo portanto, regularmente publicado em AAS 71 (1979) 941, lançou alerta incisivo para a defesa do ensinamento escatológico da Igreja, constante do Depositum Fidei.
Lá está:
“(...) a Igreja afirma a continuidade e a subsistência , depois da morte, de um elemento espiritual (alma) que está dotado de consciência e vontade, de forma a que subsista o mesmo ‘eu’ humano, carente entretanto do complemento do seu corpo”.
V
Está relembrada a fé da Igreja, na qual se mantém a antropologia sintetizada no esquema corpo-alma (alma imortal), que se equaciona com a dupla fase escatológica. Juízo particular, na morte de cada homem. Juízo final, universal, na ressurreição do último dia.
Para nós, que cremos na ressurreição da carne, a carne ressuscitará no juízo do último dia, transformada pelo poder de Deus, reintegrando o homem. O corpo transformado, se unirá à alma imortal, na qual, após a morte, continua subsistindo o mesmo “eu”. O corpo mortal sucumbe, mas sobrevive a alma, na qual subsiste o “eu”, garantindo a continuidade entre o que morreu e o que ressuscitou. Não se trata de reviver na mesma condição terrestre. Trata-se de ressuscitar o corpo em novo estado, pelo poder do Senhor nosso Deus. Ao modelo do Ressuscitado.
* * *
A nova leitura da escatologia nega a imortalidade da alma. Repele a fé no juízo particular e a salvação da alma separada do corpo, na espera do juízo final do último dia. Defende a tese de que, na morte, morre o homem todo e é ressuscitado.
Quando se pergunta como explicam a continuidade entre o homem que morreu e aquele que ressuscita, eles respondem que após a morte pode restar algo, o peculiar do homem, a “corporeitas”. A corporeidade que conserva toda a história daquele que morreu. “Este algo não é o cadáver que deixamos”, pois a matéria do corpo morto se decomporá em seus átomos para sempre.
De repente, a matéria “em si” (átomos, moléculas, sua organização)) nada mais significa, sob o argumento de que a matéria não pode alcançar novo estado, estado de glorificação ou de perfeição. Entendem que, atingindo o homem sua liberdade ao alcançar sua condição definitiva na morte, deve ter-se livrado definitivamente de seu corpo, do mundo, do tempo e da história.
Curioso. Como prosseguir falando em corporeidade, se negam toda a relação com a matéria? Negam a subsistência da alma, em nome da unicidade do ser humano, mas terminam por proclamar a persistência de uma realidade identificadora da pessoa, separada do corpo. O Catecismo Holandês e vários representantes da releitura escatológica não estarão dando outro nome para aquele elemento que se conceituava como alma? Não terminam afirmando precisamente aquilo que negavam na base de partida de suas teorias?
Se pretendem tornar mais palatável à “ciência moderna” a concepção cristã, bíblica, do ser humano, não poderão escapar quando colocada, sobre a mesa do debate com a ciência, a própria ressurreição.
VI
Devo parar por aqui. Não estou examinando uma por uma as alegações teológicas da Ganztod. Nem aquelas com que pretende atribuir contradições ao esquema corpo-alma, como a questão do tempo, do não-tempo e do sair do tempo. É um pseudo-problema. A eternidade não é o relógio parado. É sumo acontecer. Nem sequer analiso a alegação de que não seria bíblico falar em alma separada do corpo na morte. Sabe-se que “o apelo à Bíblia é somente uma evidência aparente”, como demonstra Ratzinger, no tratado que indicarei mais adiante. Sabe-se que o próprio Althaus veio a admitir, em obra posterior à sua posição inicial, que a Bíblia contém o esquema corpo-alma. Quanto ao sono da alma na espera da ressurreição, de que fala Lutero, desvale discutir. Se, conforme a Ganztod, a alma morre com o corpo, quem é aquele que vai dormir?
Faço somente mais uma observação.
Vários teólogos “da morte do homem todo”, morte total (Ganztod), proclamam que a idéia de imortalidade da alma atentaria contra atributo divino. Talvez esse entendimento tenha sido assumido contra a Ilustração alemã, cujos traços se desenham no grito de Fichte: “O que se chama morte não pode interromper minha obra. Ergo minha cabeça corajoso. Eu sou eterno!”. Para se contrapor a isso, Karl Barth sentencia: O homem morre todo. Dê-se um basta radical à pretensão da imortalidade da alma. Imortal, só Deus.
Não se confunda o grito de Fichte com a fé católica na imortalidade da alma. Seria um equívoco por demais espesso. Estar-se-ia esquecendo algo fundamental. “Aquele que é”, o “EU SOU”, é o Onipotente, o Onisciente. Pode criar tanto seres materiais, compostos, divisíveis, mortais, quanto seres espirituais, simples, indivisíveis, imortais, sem que o ser que Ele possui “ex se” seja afrontado em seus atributos. Além disso, imortal não significa eterno necessariamente. O ser criado, teve um começo. Não é eterno. Mas pode ser imortal, criado para perdurar, para não morrer. Reconhecer que o Senhor nosso Deus, Uno e Trino, criou o homem para viver e o criou à sua imagem e semelhança, nada tem a ver com um orgulho iluminista, que se afirma eterno. O Senhor nosso Deus, o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, é o Deus dos vivos. O Deus da vida.
* * *
Cada um avalie a nova leitura da fé elaborada pelos teólogos da mortalidade da alma e da ressurreição no momento mesmo da morte, em cotejo com a fé apostólica da Igreja-testemunha, relembrada aqui. Se a insuficiência destes registros não permitir um cotejo completo e objetivo, sugiro, primeiro, o estudo do documento da Comissão Internacional de Teologia, antes citado. Sugiro, em segundo lugar, se estude a obra do teólogo, hoje prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, intitulada Escatologia. Constitui o Tomo IX do Curso de Teologia Dogmática (Johann Auer), tradução espanhola, editado por Herder (Barcelona), na terceira edição, de 1992.
* * *
Concluo. É o momento de recorrer à Doutora da Igreja, cujo nome não me saiu da memória enquanto digitava estas notas.
Entrego a conclusão a Catarina de Sena, mulher santa e, por isso mesmo, valente, que morreu aos trinta e três anos de idade. Ela terminou a vida na dedicação aos pobres atingidos pela peste negra, no séc. XIV, após ter enfrentado os poderosos do seu tempo em toda a Europa, num momento crítico da história da Igreja. Em 1367, aos vinte anos, já encontramos Catarina pulsionada pela audácia da fé, reunindo o povo para anunciar o Senhor Ressuscitado. As conversões que ocorriam com a sua pregação provocavam a atenção do mundo. A Igreja a reconheceu como exemplo de seguimento evangélico ao Senhor, canonizando-a, em 1461. Fez mais. Como já sinalei, proclamou-a doutora, em 1970.
A obra principal de Catarina, ditada a auxiliares, em 1378, é “O Diálogo”.
Donde recebeu as lições de teologia constantes dessa obra? Nunca freqüentou escola. Hauriu sabedoria e conhecimento, de joelhos. Na própria Fonte da Sabedoria.
Os “cientistas da fé” não aturam se diga isto e nisto se busque a inteligência da fé. Não importa. O Senhor nosso Deus sempre agiu assim, na história de seu Povo. Elegeu quase sempre instrumentos mínimos, para manifestar-se e confortar a Revelação Pública normativa.
A lição da Santa de Sena, Itália, se equaciona perfeitamente com a Escritura e com a Tradição, depositada na Igreja de Pedro, a Igreja-testemunha. As pormenorizações que Deus Pai lhe ditou só confirmam e iluminam o que recebemos do Filho Unigênito do Pai, Verbo, Sabedoria do Pai, Nosso Senhor Jesus Cristo, ou a respeito dEle, através dos Apóstolos sempre assistidos pelo Espírito Santo da Graça e da Verdade.
* * *
Abro “O Diálogo”, na tradução do italiano por João Alves Basílio O.P. (2ª ed., Paulinas, 1984).
Catarina dita o que lhe transmite Deus Pai.

1. A felicidade dos salvos:
“O homem justo, ao encerrar a vida terrena no amor, (...) para sempre continuará a amar no grau de caridade que atingiu até chegar a Mim. (...) Será julgado na proporção do amor.
Por terem vivido no meu amor e no amor dos irmãos, (...), os bem-aventurados desfrutam dos bens pessoais e comuns que mereceram. Estabelecidos entre os anjos e santos, com eles se rejubilam na proporção do bem praticado na terra. (...) Entre si congraçados na caridade, comunicam-se, de modo especial, com aqueles que amaram no mundo. (...) Conservam-no, partilham-no profundamente entre si. Com maior intensidade. Agregados à felicidade geral.
Não penses que a felicidade celeste seja apenas individual. Não! Ela é participada por todos os cidadãos da Pátria. Homens e anjos.
Quando chega alguém à vida eterna, todos sentem sua felicidade da mesma forma como ele participa da alegria de todos. Não no sentido de que os bem-aventurados progridam ou se enriqueçam, pois todos são perfeitos e não necessitam de acréscimos. É uma felicidade, um júbilo, uma alegria que se renova interiormente, ao tomarem conhecimento da plenitude espiritual do recém-chegado” (o.c., ps. 94/96).

2. Os salvos e sua relação com o corpo:
“Os bem-aventurados desejam recuperar o corpo. Todavia não sofrem por sua ausência. Alegram-se na certeza de que essa aspiração será realizada. A ausência do corpo não lhes diminui o prazer, não é angustiante, não faz sofrer.(...) De fato, nenhuma perfeição lhes falta. Não é o corpo que faz feliz a alma, mas o contrário. Quando esta recuperar corpo no dia do juízo, participará da plenitude e da perfeição da alma. Naquele dia, (...) o corpo ficará imortal, sutil, leve. (...) Tal propriedade lhe advém, não de uma virtude própria, mas por uma força que gratuitamente concedo à alma, que foi criada à minha imagem e semelhança num inefável ato de amor.
Tua inteligência não dispõe da capacidade necessária para entender (...) a felicidade dos santos. Que prazer sentem na minha visão, que satisfação ao recuperar o corpo glorificado! Até o juízo final não o possuem, mas sem sofrimento. Suas almas já são perfeitas e o corpo apenas virá participar dessa plenitude” (ps. 96/97).

3. A relação entre os salvos e o corpo glorioso do Senhor:
“Estava Eu falando da perfeição que o corpo ressuscitado receberá da humanidade glorificada de Jesus, a qual vos dá a certeza da ressurreição.
No seu corpo brilham as chagas, sempre vivas. Conservam-se as cicatrizes a implorar continuamente perdão para vós a Mim, Pai Eterno. Os bem-aventurados assemelhar-se-ão a Cristo na alegria e no prazer: os olhos dos santos serão como os do Ressuscitado, as mãos como suas mãos, todo o corpo igual ao seu. Unidos a Mim, estarão unidos a Ele, que é um Comigo. Serão felizes vossos olhos ao ver o corpo ressuscitado de meu Filho” (o.c., p. 97).
* * *
A lição de Deus Pai, transmitida a Catarina para nós, não é outra, no fundamental, do que aquela que a Igreja recebeu do Verbo da Vida, através dos Doze.
Por meio de um de seus santos e doutores, o Senhor nosso Deus veio confirmar em nós a alegria da fé. Veio reavivar a esperança que é posse antecipada. Sua manifestação ilumina e conforta a resposta à questão escatológica, objeto destes registros.
Demos graças ao Senhor nosso Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.





















*DS - Denzinger-Schönmetzer 1000 (ed. XXXVI).

quarta-feira, 19 de maio de 2010

7Q5 – INFORME


Solicitam-me mais informações sobre o papiro 7Q5, datado de cerca do ano 50, identificado pelo paleógrafo e papirólogo J. O’Callaghan como Mc 6, 52-53.

1. Lembro que, nos registros publicado em Cultura e Fé, n. 81, indiquei algumas fontes de informação, confiáveis e acessíveis. Continuei ligado à descoberta de O’Callaghan, por considerá-la marcante. Procurei inteirar-me das repercussões do Simpósio de Eischstätt, Alemanha, 1991, que a apoiou.
Só encontrei silêncio. Os especialistas, em suas publicações, quando muito faziam referências ligeiras e lacônicas, próprias para desacreditar o fato.
Parece não suportam o abalo causado, pela identificação, à arquitetura das datações tardias dos sinóticos, teorizada por eles. Um eminente professor, para defender suas construções teóricas, chegou a proclamar, em artigo, que não se poderia alterar a datação tardia e, por conseqüência, seria inaceitável a identificação do 7Q5 como Mc 6, 52-53.
Ressai, aí, confessadamente, o “a priori” anticientífico em que se fundam os opositores.
Parecem adotar a mesma conduta dos “cientistas” dos séculos XIV e XV, que recusavam a priori o entendimento de que o planeta Terra não era o centro do Universo.
Onde fica a “objetividade científica”?
Seu raciocínio pode ser formulado assim: O 7Q5 é de cerca do ano 50, segundo os paleógrafos. Ora, se ficar provado que se trata de um fragmento de Marcos, implode-se a datação tardia dos Evangelhos estabelecida por nós, exegetas modernos. Logo, não podemos admitir se trate de um fragmento de Marcos.

2. A informação nova que tenho, nova pelo menos para mim, é a de que, curiosamente, a identificação papirológica do 7Q5 como Mc 6, 52-53 foi confirmada matematicamente.
Por solicitação de O’Callaghan, o célebre professor Alberto Dou, doutor em matemáticas e membro da Real Academia de Ciências de Madri, submeteu a identificação papirológica a cálculos de probabilidade.
O resultado confirmou a identificação de O’Callaghan, endossada por Carsten Peter Thiede e pelas atas do Simpósio de Eischstätt. O 7Q5 não pode corresponder a outro texto que não seja o de Mc 6,52-53.

3. O cálculo de probabilidade exclui dúvidas sobre a identificação.
a) Numa primeira hipótese, o Professor Dou trabalhou somente com o número de letras do fragmento. Sem especificação das letras. A possibilidade de um arranjo diferente de Mc 6, 52-53 foi de 1 contra 36.000.000.000.000. Nula, portanto.
b) Em segunda hipótese, o trabalho realizado com letras contidas no fragmento concluiu que a possibilidade de arranjo diferente de Marcos continua praticamente nula. Seria de 1 contra 900.000.000.000.
c) A terceira hipótese, última possível, buscou esgotar todas as possibilidades de variação, adotando até uma esticometria mais ampla do que a do papiro em tela. A conclusão sobre a possibilidade, mesmo em um texto esticometricamente mais extenso, foi de 1 contra 430 bilhões. Uma vez em 430.000.000.000 de opções. Mesmo nessa hipótese mais adversa à identificação do 7Q5 com Mc 6, 52-53, a probabilidade de um “acaso” contrário permaneceu nenhuma.
d) Indo mais longe, examinou-se essa possibilidade nenhuma de acaso. Impôs-se, então, a conclusão definitiva: Se a “possibilidade nenhuma”, de 1 contra 430.000.000.000 absurdamente acontecesse, teria que se referir a um texto dependente de Mc 6, 52-53. Pressuporia a existência do texto de Marcos.
A matéria foi esgotada, matematicamente. O resultado implica a conclusão definitiva de que o 7Q5 é fragmento de uma cópia de Marcos. De conseqüência, o Evangelho de Marcos foi escrito antes do ano 50.

4. A segunda informação, que talvez não seja nova para quem acompanha a questão, é a de que J. O’Callaghan concluiu sua obra definitiva sobre a descoberta do 7Q5 e sua identificação com Mc 6, 52-53. Contém a pesquisa detalhada de dezenas de anos, sua consolidação e mais a contribuição de diversos outros cientistas. Inclusive de opositores. No epílogo se encontra a análise matemática do Professor Alberto Dou, apontada no item anterior. O título da obra: LOS TESTIMONIOS MÁS ANTIGUOS DEL NUEVO TESTAMENTO – PAPIROLOGIA NEOTESTAMENTARIA.

5. Ainda sobre a datação do 7Q5, lembro que foi apurada pelo paleógrafo Roberts, de Oxford, sem contestação de outros paleógrafos. Houve um crítico textual, não-paleógrafo, que se opôs, mas sua oposição foi liquidada. O professor F. Rohrhirsch descobriu que o crítico textual, não-paleógrafo, se fundara em um programa equivocado inserido no computador e o denunciou em livro. Programado equivocadamente, o computador utilizado pelo contestante só poderia oferecer resultados equivocados.

A identificação do 7Q5 como Mc 6, 52-53 é definitiva. A redação do Evangelho de Marcos não é de após 70 ou 80 como divulgam para o povo, mas de antes do ano 50. O trabalho consciente e sério prestado por J. O’Callaghan à ciência lança aos arquivos mortos a datação tardia dos Evangelhos. E, por conseguinte, sem pretensão apologética alguma, confirma os testemunhos externos dos escritores cristãos antigos. Ratifica a tradição dos Santos Padres, como, em exemplo, Justino e Irineu.
Eno Dias de Castro

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Ecumenismo

Revista Cultura e Fé, n° 111 - 2005
Eno Dias de Castro - edcrs@uol.com.br


ECUMENISMO – ANOTAÇÕES


Consciência do dever de restaurar a unidade entre os cristãos, o ecumenismo não é um apêndice juntado à vida da Igreja. É um imperativo da sua própria ontologia.
João nos conta, em Jo 17,21, que o Senhor queria fôssemos todos um à semelhança da Unidade Trinitária. E, por Atos 4,32, sabemos como a Igreja logo no começo constituía um só coração e uma só alma.
Entretanto, o pecado da divisão aconteceu e foi multiplicado.
A multiplicação da divisão fez João Paulo II interrogar o mundo cristão, exclamando na Ut unum sint, 6: “Como é possível permanecermos divididos, se, pelo batismo, fomos imersos na morte do Senhor?”
* * *
Parece, em um primeiro lance, que a questão da unidade na diversidade tem relação com a questão do uno e do múltiplo, posta em tempos recuados e formulada com insistência pelos filósofos gregos. Parece, porque a unidade é uma questão que emerge do fundo do ser humano. Algo assim como uma lembrança primordial, não explicitada. Uma saudade de plenitude por participação, que dorme no coração do ser marcado de finitude.
Evitando esse caminho da especulação filosófica, tento manter estas anotações no roteiro da fé. A Fundação do Senhor, a Igreja do Senhor, que aponta para a nova unidade dos homens, varões e mulheres, deve testemunhar a unidade nela mesma, sob pena de escândalo. Nenhum cristão pode permanecer indiferente ante as divisões.
* * *
O coração dos que aderiram ao Senhor Jesus Cristo para valer anseia pelo retorno à comunhão plena entre todos os batizados, pela restauração da unidade na verdade e no bem-querer, respeitadas as diferenças legítimas.
Esse anseio deve tornar-se busca concreta. Busca da comunhão plena, na fé recebida dos Apóstolos. Deve. A busca se torna imperativa a partir daquilo de Jo 17, 21. E, para quantos fazem a experiência da alegria da pertença à Fundação do Senhor, à medida em que se informam e rezam, além de mandamento, o anseio pela unidade se torna uma paixão.
* * *
Apaixonado pela união, pela participação em um só Cálice ao redor de um só Altar, o cristão em comunhão com Pedro se pergunta: quando chegará o dia? quando celebraremos a Páscoa todos juntos? quando voltará o tempo do começo? quando?
Há como que uma saudade daqueles dias em que todos eram um só coração e uma só alma. É como se a alma do cristão que experimenta esse fascínio tivesse a juventude da fé de dois mil anos atrás. O fascínio da saudade gera uma atmosfera real, tão real que, ao experimentá-la, o cristão se sente contemporânea daqueles que viveram Pentecostes.
* * *

Será possível algum prognóstico sobre quando chegará o dia? Penso que não. Ainda não. Ao tratarmos da separação e da unidade, estamos diante do mistério do pecado e da graça. Isso é consabido, para os cristãos medianamente informados. A comunhão interior e formalmente completa entre os cristãos, depende de uma intervenção decisiva do Espírito Santo Paráclito, do Ruah da Verdade e do Amor, Sopro que purifica, unifica, unge e rejuvenesce a Igreja. É somente Ele quem poderá sanar as chagas das nossas rupturas e fazer com que se reconstitua o tecido da unidade. A condição, para essa intervenção, é a nossa conversão.
Precisamos todos postular a graça que nos pulsione a uma conversão verdadeira. Conversão de todos nós batizados. Penso na conversão que se impõe como consciência e tarefa. Conversão que deve implicar todas as comunidades de fé. Toda a Igreja. Ocidental e oriental.
Pressuposto e ao mesmo tempo sinal do processo de conversão é o diálogo intelectualmente honesto, para a busca da verdade, na humildade, no respeito recíproco e no mútuo querer bem.

O fundamental destas afirmações não é meu. Não constitui novidade alguma. Leão XIII, Bento XV, João XXIII, Paulo VI, gigante na busca da unidade, João Paulo II, heróico no abrir caminhos concretos rumo à unidade, o grande Atenágoras, abençoado Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla e seus dignos sucessores, todos proclamaram a necessidade da intervenção do Espírito Santo para que o retorno à unidade aconteça..
Hoje, Bento XVI, que, para mim, foi o teólogo da unidade, está iluminando, aplainando e aquecendo os caminhos abertos por seus antecessores.

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Não se pode fazer prognósticos sobre a restauração da unidade perdida. Entendo, entretanto, que nunca será demasia insistir, por todas as formas ao nosso alcance, para que não se apague em nossa consciência o mandamento da unidade. Não podemos deixar se extinga a chama da saudade dos tempos em que todos eram um. A unidade foi objeto de oração especial do Senhor.

Tentando manter a chama, prossigo com apontamentos sobre as rupturas ocorridas e sobre o modelo da unidade que penso deva ser buscada, cingindo-me às relações com nossos irmãos ortodoxos.
Faço apenas anotações. Descartei a idéia de tratar o tema do modo didático. Todo o católico informado tem noção bastante sobre o ecumenismo. Não o confunde com diálogo inter-religioso nem com pancristianismo.
Prossigo voltado para a separação ocorrida no Oriente (sécs. V e XI). No Ocidente as rupturas são quase inumeráveis. As comunidades que inicialmente se separaram em nome de Lutero (séc. XVI), por exemplo, de rupturas em rupturas entre si mesmas, já constituem milhares hoje. Por isso mesmo, é praticamente impossível distingui-las para agrupá-las segundo notas básicas, a fim de compreendê-las e situá-las perante o modelo de unidade a buscar.

Como se percebe, estou distinguindo as rupturas em dois grandes grupos, apenas pelo critério meramente geográfico. Rupturas do Oriente e rupturas do Ocidente. Faço isso para não complicar um simples trabalho constituído de anotações. No Oriente, vejo duas principais. No Ocidente, múltiplas. Nestas anotações, já sinalei, restrinjo-me às rupturas no Oriente. E, particularmente, à ocorrida no séc. XI.

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No Oriente, com repercussão, abrangência e continuidade, houve duas rupturas principais. Deu-se a primeira em 451. Foi a das Igrejas não-calcedonianas. A segunda, impropriamente marcada como ocorrida em 1054, foi a da Igreja Ortodoxa.
A ruptura de 451, que deu origem às Igrejas não-calcedonianas, ocorreu quando o desenho conceitual do mistério do Senhor Jesus Cristo já estava avançado. Já havia acontecido o Concílio de Nicéia (325). A formulação da fé na consubstancialidade do Pai e do Filho e também na humanidade assumida pelo Filho fora delineada. A Igreja una professava a fé de Nicéia, como fé das origens. Esta profissão de fé, esta unidade, desvela um pressuposto, o pressuposto de que havia unidade na estrutura da Igreja na qual se fundara aquele concílio.

Perceba-se que, em Nicéia, se tratava de guardar a fé da origem, a fé recebida dos Doze. Não estava em questão apenas a unidade relativa a uma expressão, a uma fórmula, a um modo de dizer determinada verdade de fé. As definições ali formuladas tinham como pressuposto a consciência da unidade no modo pelo qual a partir de Jesus, da Palavra de Jesus e dos Apóstolos, a Igreja se formara e se constituíra. No modo pelo qual o Cristianismo se configurara na história. Manifestava-se, então, a consciência de que a Igreja lá reunida era a Fundação do Senhor, contra a qual as portas do inferno nunca prevalecerão (Mt 16, 18).

É de ver que a fé comum, professada em Nicéia, revela que se tinha como verdadeira, em suas raízes e em seu caule, a Igreja reunida ali e naquela época. Para os Padres Conciliares todos, a Igreja, descrita na Escritura e na história, era a depositária da Palavra tal como se havia desenvolvido até o séc. IV. Significa que se tinha por intocável tanto a Escritura quanto a Igreja nela confirmada, relativamente à sua forma básica.

Nesse patamar de compreensão está incluído um fato decisivo: o fato de que os bispos, por força de sua ordenação sacramental e da Tradictio recebida por essa ordenação, encarnam a identificação com a origem, configuram a unidade com a origem, vivem a unidade da origem.
Está aí aquele fator essencial, proclamado, já no séc. II, como parte da estrutura eclesial, como elemento sustentador, a “successio apostolorum”.

Testemunha disso é Irineu, o teólogo maior do séc. II, divulgador da compreensão da apostolicidade da Igreja una. Falo de Irineu, bispo de Lyon, aquele que tinha nos ouvidos o eco da palavra do Apóstolo João, através de Policarpo, bispo de Esmirna, mártir.

Irineu proclamava, por volta do ano 180, que a Igreja verdadeira era “aquela que tinha a tradição dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens e que chegou até nós pela sucessão dos bispos” (Adversus Haereses, III; 3, 1-2). Aqui, lembro Ratzinger, em “Teoria de los Principios Teológicos”: “O conteúdo da tradição se transmite pela sucessão e a sucessão se dá pela ordenação. A ordenação é a forma sacramental da sucessão e o conteúdo da sucessão é a tradição”. O fato-suporte da estrutura eclesial, o fato identificador da Igreja, reconhecido pelos Santos Padres, desde a era apostólica, é a “successio apostolica”.
Isto não é testemunhado apenas por Irineu de Lyon. Clemente de Roma, e terceiro sucessor de Pedro, ordenado pelo próprio Pedro segundo Tertuliano, já proclamava, por volta do ano 96, o princípio da sucessão apostólica como fato sustentador da continuidade da Igreja no tempo (Carta à Igreja de Corinto).

Essa unidade estrutural da Igreja se manifestou até o Concílio de Nicéia. A Igreja-instituição, enquanto tal, era o lugar da Palavra na história, para todas as tendências representadas naquele concílio. O colegiado dos bispos validamente ordenados era a garantia e o sinal existencial da Igreja do Senhor.

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Sob o aspecto do princípio da sucessão apostólica como fato-suporte da estrutura eclesial, não há diferença entre as Igrejas do Oriente, que se separaram. As Igrejas lá separadas mantiveram o fato que as une à origem. As Igrejas não-calcedonianas, conhecidas como monofisitas, mantiveram a unidade sacramental, com bispos verdadeiros, tal como ocorreu com as Igrejas ortodoxas.

Distingue-se, entretanto, a ruptura de 451 da ruptura que costumam situar em 1054. A primeira, explicitada por ocasião do Concílio de Calcedônia, se fundou na formulação conceitual da fé sobre a natureza do Senhor Jesus Cristo. A segunda não se fundou em formulações conceituais da fé. Centrou-se, primeiramente, na questão da jurisdição do Bispo de Roma sobre a Igreja toda. Em um segundo momento a ruptura se aprofundou com a invocação de outras questões. Desde o “Filioque” até a interpretação de Mt 5,32.

Marque-se bem. Sublinhe-se. Nenhuma das duas separações significou oposição quanto à compreensão estrutural básica da Igreja como lugar da Palavra, na história, desde a origem e para sempre. Para o Oriente e para o Ocidente continuava o fato de que, ali, onde havia um bispo em comunhão com os demais, estavam os dons sacramentais da Igreja da origem. Completamente diferente daquilo que ocorreu no Ocidente, nas rupturas do séc. XVI.

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Atenho-me, no prosseguimento, ao Oriente e, nesse, à segunda ruptura, como anunciei antes. Àquela ruptura que se diz consubstanciada por Miguel Celulário, em 1054, em contrapartida à postura do Cardeal Humberto, emissário da Sé de Roma. A questão em foco foi a da recusa à intervenção da Igreja de Roma. À jurisdição do Sucessor de Pedro.

Quanto à jurisdição do bispo de Roma, que identificaram como “monarchia papae”, segundo o conceito que, equivocadamente, dela fizeram determinados segmentos, foi caracterizada como destruição da forma estrutural da Igreja dos tempos apostólicos. Um novo modo de ser teria substituído, na Igreja do Ocidente, a forma paleoeclesial.
Para o Oriente separado, a organização eclesial do Ocidente, concebida mais tarde como “societas perfecta”, centralizada juridicamente, monolíticamente codicizada, teria destruído a realidade original da comunhão de Igrejas locais, guiadas por seus bispos, cuja unidade colegial apontava para a comunidade dos Doze. A estrutura sacramental da Igreja teria sido sufocada, no Ocidente, por uma estrutura jurídica, sintetizada na formulação do primado de jurisdição do Bispo de Roma, que teria assumido a condição de monarca absoluto, a partir do Vaticano I (1870). Esse entendimento que se estabeleceu em espesso segmento do Oriente deve ser debitado, em parte significativa, à corrente maximalista católica do séc. XIX.

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Entretanto, se o Oriente separado se detiver no exame do que definiu o Concílio Vaticano I e aprofundar cada vez mais o diálogo, verá que os maximalistas ignoraram o capítulo IV da constituição dogmática Pastor Aeternus, editada pelo Concílio Vaticano I. Como ignoraram também o que ensinou Pio IX, na carta apostólica “Mirabillis illa constantia”, de março de 1875.
Observe-se a titulação do capítulo IV da Pastor Aeternus, que trata da infalibilidade. Lá está: “Do magistério infalível do bispo de Roma”.
Note-se que foi rejeitada pelos Padres Conciliares o título “Da infalibilidade do Bispo de Roma”, proposto para aquele capítulo. Por quê? Pelo simples fato de que o Concílio não reconhecia a infalibilidade de um homem particular, mas do magistério extraordinário da Igreja proferido, “ex cathedra Petri, urbi et orbi”, pelo Sucessor de Pedro. Isso se evidencia, quando, no mesmo documento, se proclama: “ (...) aos sucessores de Pedro não foi prometido o Espírito Santo para que, por revelação sua, manifestassem uma nova doutrina, mas que, com sua assistência, custodiassem santamente e fielmente expusessem a revelação ou o depósito da fé transmitido pelos Apóstolos”.
Houve, na mesma direção, oportuna manifestação do episcopado alemão contra circular secreta de Bismarck, descoberta em 1874, a respeito da jurisdição do Bispo de Roma.

Os bispos alemães foram claros. A instituição divina é o fundamento sobre o qual assenta tanto o ministério petrino do bispo de Roma, quanto o ministério apostólico dos demais bispos. Os bispos não são instrumentos do Papa nem funcionários sem responsabilidade própria. Foram instituídos pelo Espírito Santo e postos no lugar dos apóstolos, como autênticos pastores a serviço das comunidades de fé a eles confiado.

Pio IX defendeu publicamente o ensinamento do episcopado alemão. Na carta apostólica referida acima, declarou que o comunicado coletivo dos bispos alemães oferecia a pura doutrina católica e, conseqüentemente, do Concílio e da Sé de Roma.

Quem desejar fontes, poderá encontrá-las no Enchiridion Sybolorum, Definitionum et Declarationum (DS 3117- 36ª ed.). Entre os comentaristas e historiadores, é de fácil acesso Giusepe Alberigo, em História dos Concílios Ecumênicos ( Ed. Paulus, 1995, tradução do italiano).

A jurisdição do Bispo de Roma não é um poder concorrente contra o poder “ordinário, imediato e verdadeiramente episcopal” de cada bispo em sua diocese. O ministério petrino é subsidiário ao de cada bispo. O papa não é um “superbispo” ou um “bispo universal”, que pode considerar a terra inteira como sua diocese. O critério para atuar subsidiariamente em outras dioceses é o da necessitas Ecclesiae. O ministério petrino é um serviço à Igreja toda.

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Das promulgações do Concílio Vaticano I, não se pode deduzir jamais a soberania absoluta de um homem, mesmo sendo sucessor de Pedro. Nem se pode concluir que uma modalidade centralizada de exercício do primado seja a única compatível com o dogma.
A modalidade de exercício do ministério petrino, já se disse, deve ser medida segundo o critério da necessitas Ecclesiae, o mesmo critério seguido pelo Concílio Vaticano I.
Lembremos que João Paulo II animou os teólogos a estudarem outras formas do exercício do primado, assemelhadas à que vigorou no primeiro milênio. João Paulo II tinha plena consciência de que a necessitas Ecclesiae, o “bonum animarum”, deve ser o demarcador do exercício do primado (Cultura e Fé, n ° 102/2003).

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Cumpre anotar que a questão da relação entre o jurídico e o sacramental não se esboçou apenas no segundo milênio. Já se delineara nos primeiros séculos do primeiro milênio. Recorde-se que a Igreja Ocidental havia reconhecido, desde os começos, a validade do batismo mesmo quando administrado por egressos da comunidade católica. Distinguia entre a validade e a licitude.
A distinção criava um espaco entre o sacramental e o jurídico. Essa distinção não era reconhecida pelos orientais. Para sua concepção absolutamente sacramental da Igreja, tal distinção não servia para coisa alguma. Entretanto, na realidade, essa posição dos orientais os incapacitava teologicamente para compreender a situação dos que se separaram da grande Igreja.

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Ao longo do segundo milênio a separação se tornou cada vez mais funda, a despeito de tentativas de retorno à união. A despeito do Concílio de Florença (1439), o Oriente resistiu à união e começou a desenvolver a idéia de que a ruptura com Roma já começava a ter relação com a própria estrutura da Igreja.
Em contrapartida Roma mais se convencia de que a recusa ao primado, por parte dos ortodoxos, importava ruptura com o que fora recebido dos Doze, dos quais Pedro sempre fora sinal da unidade. A comunhão com a Igreja de Roma era o sinal da pertença à Igreja.
Impunha-se, então, uma interrogação decisiva. Que pertença à Igreja poderia haver lá, onde houvesse recusa à comunhão com a Sé de Pedro?
Foi a distinção entre validade e licitude da administração dos sacramentos que apontou caminhos para que o Ocidente continuasse a reconhecer, na denominada Ortodoxia, verdadeiros sacramentos.

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O Ocidente sempre marcou fortemente os textos neotestamentários relativos a Pedro, por isso mesmo se manteve, de fato, mais fiel à Tradição, nessa questão. O Oriente, entretanto, na Igreja Ortodoxa, não teve, a partir da ruptura, até hoje, explicação clara e adequada sobre o ministério petrino.

Falam em um primado de honra. Não me parece que o reconhecimento de um “primado de honra”, que algumas Igrejas ortodoxas atribuem ao Bispo de Roma, tenha consistência. O ministério de Pedro não é questão de honra. É serviço especial para o bem do Povo de Deus. O Senhor escolheu Simão, bar Jonas, não para honrar o pobre pescador da Galiléia, mas para ser Pedro, a pedra, a rocha da unidade, órgão, instrumento da promessa, feita à sua Igreja, de que as “portas do mal” não prevaleceriam. Escolheu para que fosse o servidor dos servidores do Povo de Deus.
Aqui, em ligeira digressão, recordo Newman, em sua caminhada a partir do Anglicanismo rumo à Católica. Após longo itinerário intelectual, ele se extasiou com a coerência lógica do princípio, segundo o qual Aquele que revelou a Verdade na história não podia privar os homens de sua proteção viva, que garantisse a transmissão viva e a interpretação fiel dela. Newman descobriu e cantou o “Nunc dimittis” do velho Simeão. Descobriu o dom do ministério de Pedro.

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O que se reconhece a favor do Ocidente, não significa que não tenha havido, nele, desbordamentos da tradição inicial sobre o serviço de Pedro, a ponto de a estrutura sacramental básica da Igreja parecer um tanto obscurecida.

Houve e há, na Católica, quem confunda desdobramentos históricos, provadamente históricos, com dado da Revelação. Em exemplo, podemos referir a nomeação dos bispos pelo Sucessor de Pedro. Essa prática foi adotada no Ocidente por exigência de situações históricas e por que assim postulava a “necessitas Ecclesiae”. Exigência do momento histórico é exigência transitória, não significa que outra forma de escolha de batizados para o múnus episcopal se descompasse da verdade revelada.
Urge, assim, se enfrente a questão de que a forma de exercício do ministério petrino é histórica e não “de fide”. Esse é um dos obstáculos sérios no caminho para a unidade.

A propósito, Herman Joseph Pottmeyer, membro da Comissão Teológica Internacional e professor emérito de Teologia Fundamental, pesquisador sério no solo e subsolo do Vaticano I (1870), fez intervenção muito oportuna no Simpósio do Conselho para a Unidade dos Cristãos, realizado em junho de 2003. Enfrentou a questão do primado e da infalibilidade com clareza e competência.

Expôs e interpretou as definições conciliares a partir das atas do Concílio e superou o maximalismo divulgado e acentuado no séc. XIX.
Marcou que o critério para o exercício do primado é a necessitas Ecclesiae. Histórico, portanto. Critério que ressai do próprio Concílio e que anula a explosividade da interpretação dos maximalistas, para os quais o primado se define à semelhança das monarquias absolutistas do passado. A respeito da posição correta, ensinada por Herman Joseph Pottmeyer, relembro que o número 102 de Cultura e Fé noticia mais amplamente a atuação daquele teólogo, no Conselho para a Unidade dos Cristãos.

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Na realidade, posições maximalistas do Ocidente ou do Oriente cancelam qualquer esperança da unidade buscada pelo movimento ecumênico. O maximalismo, como o minimalismo, obstaculizam os caminhos do retorno à unidade, na verdade e no amor fraterno.
Neste passo, vale anotar que a unidade da Igreja não é um objetivo político. Sua busca é um dever arrebatador, que não se cumpre pelos atalhos do compromisso político. Estamos no terreno da fé. Trata-se da verdade. A verdade não se negocia.
Também neste passo, cumpre lembrar que exigências em nome da verdade só podem ser consideradas ali onde a verdade está inequivocamente demonstrada. Não tem cabida pretender impor como verdade de fé o que, na realidade, é somente uma forma histórica com alguma vinculação à verdade.
Mas, se essa lembrança se impõe, mais fortemente se impõem a honestidade intelectual e a sinceridade do coração quando estão em pauta a força da verdade e a sua irrenunciabilidade.

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Importa marcar bem que o maximalismo não é risco somente do Ocidente.
Quando Igrejas orientais recusam qualquer conteúdo ao primado e ao ministério petrino e pretendem que as Igrejas do Ocidente esqueçam o Vaticano I, como condição para a unidade, assumem como verdade algo que elas mesmas construiram na história, após 1054, e nada tem com a verdade que ressai da Escritura e da Tradição dos Apóstolos e dos Pais da Igreja. Assumem, no caso, uma posição maximalista.

Não é de se pretender impor às Igrejas orientais outra forma do ministério de Pedro diferente daquela que vigorou no primeiro milênio para a Igreja una, santa, católica e apostólica. Isso muito bem viu João Paulo II. E também viu o teólogo Joseph Ratzinger, como se lê em Teologische Prinzipienlehre (München, 1982), fonte principal entre aquelas nas quais me abasteço e cujos ensinamentos repito, neste parágrafo, quase ad litteram. Mas também entendo não podem as Igrejas Ortodoxas, autocéfalas ou não, ignorar o ministério petrino que ressai da Escritura e da Tradição.

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Paulo VI reiteradamente demonstrou que o Ocidente não deve e não quer impor ao Oriente, como únicos, os caminhos meramente conjunturais que a Igreja latina seguiu.

Muito menos quer manter costumes anacrônicos que se colaram na Igreja de Roma. Manifestações rotineiras de poder, feíssimas, e impróprias hoje para evangelizar, como aquelas da tríplice coroa, da cadeira gestatória e do beija-mãos ou beija-pés. Tudo isso foi eliminado. Principalmente por Paulo VI, que aboliu a tríplice coroa e a cadeira gestatória. Os outros costumes anacrônicos já haviam sido deletados antes.

Vale recordar, aqui, aquele gesto de Paulo VI, quando acolheu o Metropolita Melitão, enviado por Demétrio I, Patriarca de Constantinopla. Lembram?
Foi em 1975, na comemoração dos dez anos do abraço entre Paulo VI e Atenágoras e o levantamento da excomunhões mútuas. Ao receber o Metropolita Melitão, representante de Demétrio I, então Patriarca Ecumênico, o Sucessor de Pedro ajoelhou-se e lhe beijou os pés. Demétrio I, ao saber do fato, no mesmo dia, tocado no mais fundo de sua alma, exclamou: Paulo VI superou o Papado! Igualou-se aos Pais da Igreja! Sabem o que significa um Patriarca, Titular da Sé de Constantinopla, igualar alguém aos Pais da Igreja?
O gesto do Sucessor de Pedro sacudiu o Oriente, naquele momento, convocou-o a reformular suas concepções sobre Roma, desenvolvidas e alimentadas a partir de 1054. E, sobretudo, após a invasão de 1204. Bendito seja Paulo VI, santo de Deus!

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Reitero. Penso que o Ocidente não deva postular do Oriente uma doutrina do primado diferente daquela que vigorou no tempo do primeiro milênio. De outra parte, ao Oriente cumpre cessar de apodar como herética a evolução havida na Igreja Ocidental durante o segundo milênio e até hoje. Clamam por isso a verdade objetiva dos fatos, a justiça, o amor fraterno.
O que se impõe é um ato de recíproca aceitação. E de reconhecimento mútuo, em uma catolicidade comum e nunca abandonada, como ensinava o teólogo J. Ratzinger, hoje Bento XVI.

Um ato assim implica conversão, auto-superação, renúncia a vaidades cultivadas com manto de virtudes, a velhos rancores e a modos superficiais de análises. Isso, de ambas as partes. Da parte do Ocidente, a Católica já demonstrou humildade, amor e senso de justiça, através de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. Jogou-se para a frente. Deu todos os passos necessários para romper os muros da vaidade, do orgulho, dos ressentimentos históricos, da descaridade e da racionalização. Da parte do Oriente cabe seguir os passos do grande Atenágoras, patriarca ecumênico de Constantinopla, na década de sessenta, e dos santos patriarcas que o sucederam.

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Força é sejam banidas, decididamente, corajosamente, formas diplomáticas de expressão, superficialmente laudatórias, grandiloqüentes, tão descabidas hoje que se tornam incompreensíveis ou simplesmente suspeitas de manobra política dos comandos. Quem vai entender, hoje, aqueles tratamentos protocolares que distanciam os irmãos? Impõe-se, como de ambas as partes se tem ouvido, que a relação seja realmente fraterna, sem poses, sem exterioridades e sem fórmulas laudatórias ocas, que não levam nunca a uma conclusão real.
A conversão de que se fala, aqui, entretanto, não é de costumes protocolares apenas. Aqui se fala de um processo espiritual, de uma metanóia, que não pode reduzir-se à esfera dos comandos. Deve ser pregada à totalidade da Igreja do Oeste e do Leste e por ela assumida e vivida na caridade e na verdade, no amor fraterno, na alegria de sermos a Grande Família de Deus, gerada pelo Sangue Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo.
É preciso que a redescoberta da unidade no plano teológico aconteça também na vida de todo o Povo de Deus. A Igreja toda deve ser preparada espiritualmente, de modo que um Novo Pentecostes aconteça e a paixão pela unidade, na diversidade de dons, lavre como incêndio.

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É curial que a afirmação da possibilidade teológica básica da união entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa não deve levar-nos a conclusões apressadas.
Devem ser criados espaços espirituais para o teologicamente possível, contemplando-se tudo sob o prisma do “urgente mandamento da unidade”. Unidade que não significa uniformidade.
Urge ter presente que não é a unidade que precisa ser justificada. São os que resistem à união que devem justificar sua recusa.
Mas como justificar separações? Fechando nossa inteligência e o nosso coração para os diferentes? Suspeitando e condenando a priori? Racionalizando orgulhos e vaidades a ponto de os termos por virtudes?
Prognósticos teóricos de pouco valem, a não ser que sejam postos como tarefa a enfrentar e realizar, na verdade, na justiça e no amor.

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Para nos tornarmos agentes da unidade, com alegria e eficácia, conviria assimilássemos as cartas apostólicas “ORIENTALE LUMEN” e “UT UNUM SINT”, de João Paulo II (1995). E também seria muito oportuno lermos e assimilarmos os conteúdos oferecidos pela CNBB, no opúsculo sobre a prática do ecumenismo, editado por Edições Loyola.
Se nos convertermos e nos abrirmos, por graça, a uma viva consciência de Igreja, ao poder do Espírito Santo, dimensões mais vastas do que os estreitos limites paroquiais e diocesanos se desvelarão. Perceberemos a vastidão de beleza pluriforme da Casa do Senhor, lugar onde, já aqui na terra, a reunião de todos na Trindade começa. Reunião, comunhão, para a qual fomos criados. Povo reunido, na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. “De unitate Patris, Filii et Spiritus Sancti plebs adunata”, como queria Cipriano de Antioquia, bispo, Padre da Igreja, apaixonado pela unidade, mártir do ano 258. Como, repetindo os Pais da Igreja, proclamava Henri de Lubac com insistência, em “Meditation sur l'Eglise”, lá pela metade do séc. XX.

Com essa percepção, os nossos limites estreitos se implodem. Encontramo-nos, então, na vastidão do universo da graça. Na única comunidade verdadeiramente aberta para todos quantos buscam a verdade, a justiça, o amor, a alegria da identidade do homem. Ali, onde, libertos dos limites do geográfico, do étnico, do sociológico e do político, fazemos a experiência daquela alegria de sermos todos um. Todos irmãos no Senhor nosso Deus. Todos com um só coração e uma só alma.

Miserere nobis. Domine, secundum magnam misericordiam tuam.
Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix.