segunda-feira, 18 de novembro de 2013



Revista Cultura e Fé, n° 122 – 2008
Eno Dias de Castro
enodiasdecastro@gmail.com

 

                           A IGREJA EM DÍVIDA?

 Mesmo após a Ordinatio Sacerdotalis continuam não poucos presbíteros a proclamar, até em manifestação impressa, que a Igreja tem uma dívida pendente para com as mulheres, por não lhes ter propiciado, em dois mil anos de existência, acesso ao ministério ordenado.
Na minha limitação de leigo, peço vênia para deles discordar. Uma dívida, mesmo quando metafórica, tem como pressuposto um direito. No caso, o pressuposto seria o direito ao ministério ordenado.
Entretanto, é consabido que o acesso ao ministério ordenado não é um direito. Dom, gratuidade pura, o ministério ordenado não pode ser objeto de reivindicações. Ninguém tem direito a ele. Nem o homem nem a mulher.
Quem convoca para esse ministério é o Senhor. Foi Ele quem o instituiu e foi Ele quem convocou homens e não mulheres para exercê-lo “in persona eius”. Por que agiu assim não sei. Foi desígnio seu. Ele é o Senhor e Redentor nosso. A Igreja é dEle. É a Fundação dEle.
O ministério ordenado é um dom ao Povo de Deus. Um serviço. Não um direito. Muito menos denotação de “status”. Reivindicá-lo para si ou para determinado segmento parece-me equívoco espesso. A compreensão neotestamentária da vida, no Povo de Deus, desautoriza reivindicação de funções.
Lembro Paulo, em Ef 4,11-12: “(...) kai autós édoken”. E “Ele próprio deu, constituiu ministros a quem quis”, segundo seus desígnios, “para a obra do ministério” e construção de seu Povo. Se convocou somente um dos termos do binômio humano, foi desígnio seu. O Senhor convoca para esse ministério a quem quer. E convoca para servir. Não para autoafirmação de um dos termos do binômio “vir et mulier.
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  Se as duas partes da espécie constituem um binômio, constituem-no como binômio de reciprocidade. Não de antinomia ou dependência que subjuga e algema. Desenha-se um binômio de interdependência recíproca, para a realização de um destino único, idêntico. De um projeto de plenitude para todos. Se o Senhor chamou apenas homens, varões, para o ministério ordenado, foi decisão sua.
Não sei, já disse, por que dispôs assim. Alguns arriscam razões para esse agir do Senhor. De minha parte, confesso que não ouso. E não ouso pelo simples fato de que não assino os argumentos de razão humana apresentados pelos tratadistas para justificar a escolha de um dos termos do binômio.
Na verdade, humanamente falando, penso que as mulheres discípulas, à época, foram muito mais dignas para a convocação. Todas ficaram firmes, de pé, junto à cruz, quando Jesus foi crucificado. Do grupo de discípulos homens, apenas um ficou. Os demais, ao que se sabe, fugiram.
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 Os cobradores da suposta dívida, despercebem o fundamental. E o fundamental, no caso, é o fato de que a Igreja não é dona dos sacramentos. É apenas depositária e administradora.
Isso não é novidade. Foi objeto de proclamação de Pio XII, em 1947.  Está lá, sem rodeios, na Constituição Apostólica “Sacramentum Ordinis”.   Para não deixar dúvidas o Sucessor de Pedro invocou as fontes da Revelação e o Concílio de Trento.
O texto: “A Igreja não tem poder algum sobre a substância dos sacramentos, quer dizer, sobre aquilo  que Cristo Senhor, conforme o testemunho das fontes da Revelação, quis fosse mantido no sinal sacramental.” (AAS,  40, 7, 1948).
Quem quiser conferir pode também abrir o Denzinger, n° 3857. Lá está o texto da encíclica.
Mais tarde a declaração “Inter insignores”, da Congregação para a Doutrina da Fé (1976), aprovada por Paulo VI, sintetizou a matéria em tela, dizendo lapidarmente:Quae Christus et Apostoli fecerunt normae perpetuae sunt”. O que Cristo e os Apóstolos fizeram constitui norma para sempre, em tudo o que diz com o fundamental da fé e dos sacramentos.
Os integrantes da CDF tinham na memória um testemunho do ano 96. Testemunho do terceiro sucessor de Pedro, Clemente Romano, companheiro dos Apóstolos,  homem da era apostólica portanto.

Clemente testemunhou da Igreja de Roma para a Igreja de Corinto, que os Apóstolos, “instruídos pelo Senhor, tendo conhecimento das futuras contestações estabeleceram como sucessores homens, varões, comprovados, para os sucederem em seu ministério” (Carta aos Coríntios, 44, ed. Vozes, ps. 44/45, trad. do grego por P.E. Arns).
Por sobre tudo isto, temos, de 1994, a sentença definitiva de João Paulo II, na Carta Apostólica  Ordinatio Sacerdotalis”, dirigida a todos os bispos da Igreja Católica:  “ … Portanto, para ser excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude de meu ministério de confirmar os irmãos (Luc 22,23), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal a mulheres e que esta sentença deve ser considerada definitiva para todos os fiéis católicos”.     
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A Igreja não pode inventar, mutilar ou cancelar coisa alguma que diga com a substância da fé e dos sacramentos. Nem o múnus petrino é o de representar uma média de opiniões ou a opinião de maiorias eventuais. Não pode o Sucessor de Pedro sujeitar-se a pressões lobistas, no que respeita à fé. O que vincula a Igreja é a verdade recebida do Senhor e dos Apóstolos. Cumpre-lhe vivê-la e ensiná-la sem transações ou manipulações. Ainda que para tanto se veja ante o martírio. Essa força ela tem e terá sempre. Não pelo valor dos homens investidos no poder-serviço de governo, mas pela garantia da promessa que o Apóstolo Mateus gravou em seu evangelho (Mt 16,18).
Na sentença de João Paulo, antes referida, estamos diante da explicitação de uma verdade que integra o Depósito da Fé Apostólica. Verdade que à Igreja só cabe guardar e transmitir, sem faculdade alguma de cancelá-la, encurtá-las o contorná-la.
 O Bispo de Roma, sucessor de Pedro, não propõe nenhuma formulação dogmática nova. Confirma somente uma certeza que foi constantemente afirmada e vivida pela Fundação do Senhor, desde as origens. É declaração de uma doutrina recebida como definitiva na própria origem, não reformável.
Não se trata de ato meramente prudencial nem de hipótese mais provável. Menos ainda uma disposição disciplinar. Deu-se forma concreta, explícita a uma certeza vivida pela Igreja desde o princípio e que, agora, alguns quiseram abalar sem base em dúvida verdadeira.
É ato de magistério não propriamente definidor, mas confirmatório de uma compreensão preexistente da fé comum recebida desde a era apostólica. Ato de magistério autêntico, que se conumera entre aqueles garantidos pela promessa do Senhor a Pedro (Mt 16, 18).

O que João Paulo defendeu foi o que recebemos na origem, como atestam também as Igrejas  que se afastaram da comunhão com a Sé de Roma, mas  mantiveram a apostolicidade, pela ordenação episcopal válida.
Assim foi na Igreja indivisa dos três primeiros séculos. Assim permaneceram os segmentos separados, nos quais continuou a correr a seiva da Sucessão Apostólica, porque pastoreados por homens devidamente ordenados, marcados pela ordenação episcopal  verdadeira.
É o que se verifica nas Igrejas pré-calcedonianas , separadas no séc.V. O mesmo vale para o espesso segmento denominado Igreja Ortodoxa, separado no séc. XI. Nelas não se obstruiu  o canal estabelecido pela “imposição das mãos”,  pelo qual a “gratia successionis” mana dos poços eternos da Trindade Santíssima. Não se cancelou nem se distorceu nelas o que foi recebido na origem, quanto ao Sacramento da Ordem. Continuaram, sob esse aspecto, em consonância com a Católica, na qual induvidosamente subsiste a Fundação do Senhor.
O Patriarca Mar Dinkha IV, da Igreja Assíria do Oriente, demonstrou isso na visita à Sé de Roma, em novembro de 1994. O mesmo se verificou, em junho de 1995, quando Bartolomeu I, Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, também visitou o Sucessor de Pedro.

A Tradição Apostólica, sem qualquer hiato na Igreja Católica e naquelas Igrejas separadas que mantiveram a sucessão de bispos verdadeiros, aponta para a falácia da hipótese de condicionamento cultural na reserva do ministério ordenado ao homem, varão.
Os bispos, por sua ordenação sacramental válida, e pela tradição eclesial recebida mediante a ordenação, marcam a continuidade e unidade com a origem. Relembre-se, com Ratzinger, que o conteúdo da sucessão apostólica é a tradição e a forma é o Sacramento da Ordem.
A continuidade com o Colegiado Apostólico dos Doze é fator essencial. Por ele se identificava, claramente, já no séc. II, a “successio apostolica”. Sucessão apostólica na qual se atesta, constantemente, a recepção da reserva do Sacramento da Ordem ao varão como disposição do Senhor. Disposição encarnada na história pelos Doze e por eles transmitida à Igreja primitiva. Isso é o fato. Fato que por si só já constitui garantia contra a mera hipótese do condicionamento cultural machista.
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A hipótese de submissão à cultura da época por parte do Senhor e dos Apóstolos não se sustenta. A realidade neotestamentária a elimina.

Primeiro, os Apóstolos constituíram sucessores e determinaram que estes constituíssem, como tais, outros homens “aprovados. Homens. Especificamente, varões, “andres”, “viri”, para o fim de os sucederem.  Tal como vemos em Clemente Romano, Irineu e Justino, respectivamente testemunhas dos sécs. I e II. Por exemplo. E, marque-se bem, fizeram isso de dentro da cultura grega e latina, nas quais era comum a figura das sacerdotizas. Portanto, ao ensinarem isso, essas testemunhas da Igreja dos primeiros tempos não o fizeram jugulados por cultura que não admitia mulheres com funções no culto religioso.
Segundo, o Senhor, por sua vez, não se sujeitou a algemas culturais em nenhum outro aspecto da escolha dos Doze. Por que somente se teria sujeitado  ao escolher apenas varões para o ministério ordenado?
Lembre-se. Em todos os patamares o Senhor agiu com independência  absoluta, revelando uma autoridade única. Sem precedentes. Reiterava, com freqüência: “Foi dito, Eu porém vos digo”.
Mais do que isso, não é a proclamação de Si Mesmo como “Senhor do sábado” uma demonstração definitiva, inquestionável,  de que os costumes e os mandamentos culturais não O jugulavam?
A condenação do legalismo exterior, apontando o pecado já na raiz do pensamento e do desejo, é outra evidência do constante enfrentamento com a cultura da época.
E, por fim,  não podemos esquecer igualmente a ação de graças ao Pai por se revelar aos pequenos e aos simples. Não aos detentores de “status”, que ocupavam os primeiros lugares nos atos públicos ou privados.

Terceiro, que Ele não se submeteu a outros aspectos é manifesto. Convocou homens sem currículo e sem diplomas, contrariando os critérios esperados para a época. Entre os chamados não se conumera escriba algum. Nenhum doutor da lei. A casta sacerdotal judaica não foi sequer consultada para obtenção de apoio à grande virada neotestamentária
Perceba-se. Nenhuma forma de “marketing” da época foi utilizada. Ao contrário. A plataforma do Senhor era culturalmente apavorantes. Vejam-se Mt 8,20 e Lc 9,58. Lá está: “As raposas têm suas tocas. As aves do céu, seu ninhos. O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. E mais. Anuncia que os convocados seriam perseguidos, torturados e mortos. Entretanto, o chamado, o convite, tinha a forma de um imperativo. Ele simplesmente dizia: Vem e segue-me. Nenhuma promessa de “status”” neste mundo nosso. Neste mundo do dinheiro, do poder, da honra e do prazer. Mas a convocação lacônica era quase irresistível.

Quarto, mais especificamente, no que diz com o objeto destes registros, qual o agir do Senhor em relação à mulher?
É conhecida a condição da mulher, naquele tempo. Excluída de qualquer participação pública, a mulher era culturalmente marginalizada. Para os escribas era até tipificação de conduta vergonhosa conversar com uma mulher na via pública.
O Senhor rompeu esse cinturão cultural. Pregou de cidade em cidade, de povoado em povoado, acompanhado por discípulos, entre os quais várias senhoras. A mãe de Tiago e João, Maria esposa de Cléofas, por exemplo, e tantas outras. Nunca deixou de falar em público com alguém por ser mulher. Não excetuou nem a Samaritana, para espanto dos próprios discípulos.
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É de ver que a hipótese cultural  se esboroa e quebra ante a realidade. O Senhor inaugurou o tempo da Aliança Nova.
Isto está bem demarcado já na era apostólica. Recordo uma proclamação de Paulo que decide, na perspectiva da fé: “Não há mais judeus nem gregos. Não há escravos nem livres. Nem homem nem mulher. Todos vós sois um em Cristo Jesus”. (Gal. 3,28).
De conseguinte, quando Paulo e toda a Igreja nascente limitam o ministério ordenado ao termo masculino do binômio humano, não o fazem por imposições culturais. O binômio, como se lê, na Carta aos Gálatas, convertera-se na unidade de um binômio de reciprocidade, pela força da graça redentora e do destino único da ressurreição.
Se discriminações culturais ocorreram  na vida social das comunidades eclesiais, nunca se impuseram no plano da fé  e da graça. Com Paulo a Igreja sempre proclamou que todos são “um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). 
Quando Paulo determinou que Tito e Timóteo ordenassem varões é pelo fato de que recebeu isso do Senhor, diretamente ou através de Pedro e das outras “colunas.” Especialmente, através de Pedro.
Não esqueçamos que Paulo, após algum tempo de pregação, foi a Jerusalém para ver Pedro e permaneceu junto a ele meio mês. É o que  nos conta em carta aos gálatas (Gl 1,18). Ali, escrevendo em grego, usa a forma verbal  historésai Kephan”.  “Ver  Céfas”. Ver  Pedro, a Rocha.  Historésai” é um ver por motivo singular. Por uma necessidade interior de conferir com ele tudo quanto começara a pregar. “Historésai” sinaliza  busca de informação. Necessidade de ver para  perguntar, contar, descrever, “abrir o coração”. Pedro só pode ter confirmado a verdade de que o Senhor reservara o ministério ordenado ao homem, como serviço ao seu Povo, não como privilégio. Foi isso que Paulo passou a Tito, a Timóteo e a todos quantos o ouviram e seguiram.
Mais. Não há como falar em discriminação da mulher na reserva da ordenação ao termo masculino do binômio humano, quando se vê a Igreja aclamar uma mulher como a mais perfeita e santa entre todos os homens, “viri et mulieres”. 
Quando a Igreja  aclama uma mulher como Senhora dos anjos e dos homens, não pode julgar o termo feminino do binômio humano como inferior ao termo masculino. Quando aponta uma mulher como o mais perfeito reflexo da glória de Deus, demonstra que no horizonte da fé e da graça não se pode admitir discriminação alguma.
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Para a Igreja, a santidade e a participação viva e vivificante na vida eclesial não se medem pelo ingresso ou não no ministério ordenado. Medem-se pela disponibilidade em servir, pela doação de si mesmo ao serviço dos irmãos, pela humildade e pelo amor. Pela fidelidade à fé recebida na origem, pela coerência da vida com a fé proclamada. Pela vida de comunhão com o Senhor. Não pelo reconhecimento traduzido em desempenho de funções.

Vale reiterar. Ninguém tem direito à ordenação. Nem o homem nem a mulher. Quem se julga com direitos ao ministério ordenado já está a demonstrar a própria incapacidade para recebê-lo. Não foi a Igreja, não foi a comunidade nem poder humano algum que instituiu o Sacramento da Ordem. Foi o Senhor. E foi Ele quem convocou somente homens para a ordenação. Nem o Bispo de Roma nem o Colegiado de todos os Bispos tem poder para alterar ou cancelar o que diz com instituição divina da Igreja. Foi o que disse Pedro pela boca de João Paulo, em sentença definitiva.