quarta-feira, 30 de julho de 2008

BENTO XVI - APONTAMENTOS

Cultura e Fé, n° 109/2005
Eno Dias de Castro
edcrs@uol.com.br

BENTO XVI – APONTAMENTOS



Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade (Hb 9,10).
O núcleo da vida do ducentésimo sexagésimo quinto sucessor de Pedro se define nesse texto da Escritura. Nele se encontra a narração interior de sua vida.
Tive essa percepção quando o li pela primeira vez, há algumas décadas, em “Teoría de los Prncipios Teológicos” (Ed. Herder, Barcelona). E, depois, essa percepção voltava e voltava, sempre que o estudava em obras teológicas, artigos ou entrevistas. Toda a atividade dele me parecia animada por uma densa relação interior com o Senhor Jesus Cristo, vivo e atuante na Igreja. Ele me pareceu sempre um homem que conhece o Senhor a partir de dentro.
Confirmaram-me essa impressão todos os testemunhos que ouvi sobre ele. Testemunhos de leigos, como Vittorio Messori, escritor e jornalista, que o entrevistou longa e sagazmente, já no descambar do séc. XX. De membros da hierarquia, como o arcebispo de Havana, Cardeal Jaime Ortega, que o conhece de perto e há dezenas de anos.

Messori testemunhou a vida simples e humilde do então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Diz que observou pessoalmente sua vida enraizada na oração. E os colaboradores de trabalho lhe atestaram como Ratzinger cimenta toda a atividade em um cristianismo vivido como serviço ao povo de Deus. (Rapporto sulla Fede, 1985).

Ortega prevê que o novo sucessor de Pedro prestará serviço inestimável ao Povo de Deus, pela clareza de suas posições e pela firmeza de suas orientações, contra o nihilismo cultural e moral e contra o relativismo desorientador da vida. Diz que pela sua constante preocupação com os povos sofridos, por sua paixão pela verdade e pela justiça dosada pela misericórdia, será uma referência moral para a humanidade. Acentua também que ressai nele a capacidade de ouvir com paciência e respeito a todas as pessoas, sem distinção alguma (ZENIT – Entrevista).

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Bem antes do conclave que o elegeria, já me animava a esperança de que fosse Ratzinger o sucessor de João Paulo, mas não podia esperar sinais daquilo que dele pensava, já nos primeiros momentos após a eleição. Não esperava, mas ocorreram.




Lembram-se? Foi na homilia da Celebração da Eucaristia, que marcou o início do ministério petrino a que fora chamado. Temos todos na memória aquelas palavras definidoras de uma vida: “Meu verdadeiro plano é não fazer a minha vontade, não amarrar-me às minhas próprias idéias, mas pôr-me, juntamente com toda a Igreja, à escuta da Palavra e da Vontade do Senhor e deixar-me conduzir por Ele, de modo que seja Ele mesmo quem conduza a Igreja nesta hora de nossa história”.
O novo Bispo de Roma, que se apresentava assim para seus diocesanos e para o mundo inteiro é o mesmo bispo que, poucos dias antes, marcou o coração de milhões, ao despedir-se de João Paulo II em nome da Igreja, dizendo: “Deixaste-nos, Padre Santo. Por nós te consumiste. Nesta hora, para ti gloriosa, para nós dolorosa, sentimo-nos abandonados. Mas tu nos tomas pela mão e nos guias com tua mão que nestes meses se fez em ti palavra. Obrigado, Padre Santo”.

Sim. Esse é o homem que o Senhor colocou na cadeira de Pedro. Para que falar mais?
Pediram-me, entretanto, que, como leigo, escrevesse alguns apontamentos sobre o cardeal que se tornou Bento XVI. É o que tento agora.

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Penso que Joseph Ratzinger é um homem que ainda bem jovem fez a experiência de Deus. Essa experiência o marcou e o conduziu à consagração da vida ao serviço do Povo de Deus.
Ele vive a certeza da Graça do Pneuma Hágion no seio da Igreja. Na realidade, encontra essa certeza na Eucaristia, obra do Pneuma. Ele vive a fé na “Eucaristia, vida da Igreja”.
Lembre-se a mensagem aos cardeais, na manhã do dia vinte de abril: “ (...) De maneira muito significativa, este meu ministério começa quando a Igreja está a viver o ano especial dedicado à Eucaristia. Como deixar de acolher esta coincidência providencial, como um elemento que deve caracterizar o ministério ao qual fui chamado?
Mais adiante, na mesma mensagem, proclama que da plena comunhão com o Senhor na Eucaristia “nascem todos os outros elementos da vida da Igreja. Em primeiro lugar, a comunhão entre todos os fiéis, o compromisso de anunciar e testemunhar o Evangelho, o ardor da caridade para com todos. Especialmente, para com os mais pobres e pequenos.
Foi com essa convicção que, ainda na mesma oportunidade, fez apelo a todos os bispos e ministros ordenados, para que “exprimam de modo corajoso e claro a fé na presença real do Senhor” na Eucaristia. Sobretudo durante as celebrações litúrgicas.




Um momento anterior que retive foi aquele da apresentação do eleito, urbi et orbi, pelo Cardeal Camerlengo. O momento em que, já como Bento XVI, invocou a Mãe Santíssima.
Fui conferir onde, há tempos, tinha encontrado manifestação dele sobre a importância da intercessão de Maria Santíssima para a Igreja e para a humanidade.
Logo encontrei um. Estava lá, em “Rapporto sulla fede”, entrevista com Vittorio Messori, realizada em 15 de agosto de 1984.
Pela metade da conversação, Ratzinger foi questionado sobre a possibilidade de superação da crise de fé, na velha Europa. Sem vacilar, assinalou que um dos remédios mais eficazes levava um nome curto: Maria.
Mais uma vez, resposta sem rodeios. Não ensaiou, primeiro, reflexões teológicas. Não impostou ressalvas. Simplesmente apontou o caminho em direção à Mãe Bendita do Senhor. Como algo espontâneo que emergisse de seu coração, sem censura teológica prévia.
A volta àquele nome, obscurecido por alguns segmentos católicos após o Vaticano II, pareceu um imperativo para o teólogo Joseph Ratzinger, então já Bispo e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Apontou o caminho e agregou: “se o lugar ocupado por Nossa Senhora foi sempre essencial para o equilíbrio da fé, reencontrar hoje tal lugar é urgente, tão urgente como em poucas outras épocas da história da Igreja”.

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Dizer que Ratzinger sempre se distinguiu pela inteligência privilegiada e pela condição de teólogo agudo é lugar comum. Os que o aplaudem referem sempre essas qualidades. Os que o criticam não as negam. Munique, Tübingen, Regensburg, cidades onde desenvolveu magistério universitário, e Roma do Vaticano II, onde atuou como assessor de bispos, atestaram esses dons naturais.
Para mim, importam, aqui, três aspectos que nele encontrei: espiritualidade funda, viva e simples; reflexão teológica lúcida, cimentada na tradição apostólica, não no próprio ego; constante preocupação com os problemas do homem e das comunidades humanas. Esses aspectos o distinguiam e mostravam, para mim, donde vertiam sua teologia e seu testemunho de vida.
Como apontei ao início, a fonte estava ali. Na busca constante da realização do plano de Deus. Na vida de comunhão com o Senhor. No amor misericordioso para com todos os seres humanos oprimidos pelo pecado, pela mentira, pela injustiça e pela exclusão imposta pela cultura da opulência e da funcionalidade. Muito ao contrário do que repetem em coro três ou quatro detratores profissionais, usando a mídia como caixa de ressonância. Ratzinger sempre denunciou a cultura da funcionalidade, do consumismo, da dominação e da opressão, “marca das classes abastadas e poderosas”. E fez isso com a força de sua vida ancorada no Senhor. Por isso mesmo, para ele, “Ecclesia semper reformanda est”. Quer a Igreja reformando-se sempre, para que nunca perca a vitalidade espiritual e não cesse de testemunhar.

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Ao lê-lo e ouvi-lo, notamos que sempre volta a sinalar a urgência de vivermos e testemunharmos nossa adesão ao Senhor Jesus Cristo, no qual se descobre a fonte do amor, da justiça, da verdade e da alegria.
Anote-se que, embora seja um homem de ação, nunca se deixou enredar na teia do ativismo dominante, para o qual o homem é um fazedor de coisas ou não é.
Não se deixou ajoujar pelos doutrinadores do ativismo que apresentam a Igreja como um povo atarefado, empenhado em um programa de ação com “resultados” sociais, políticos e culturais.
Não resvala pelas ladeiras que levam à redução do cristianismo à ideologia machista do fazer. Muito menos à ideologia infantil do número, da imagem, da vitrine, do aplauso. A ideologia machista do fazer é identificada por ele como aquela que “apresenta um projeto de Igreja em que não há mais lugar para a experiência mística. Experiência que ele considera o “cume da vida religiosa que, não por acaso, esteve entre as glórias e riquezas a todos oferecidas, com milenária constância e abundância, mais por mulheres do que por homens” (Rapporto). Por valorizar o testemunho de solidariedade, de renúncia, de serviço e de alegria dessas mulheres e homens santos, formados na oração, ele os aponta como exemplo de particular atualidade para mudar o mundo.

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Seguidor do Senhor, não se abate com as caricaturas espalhadas pela mídia norte-americana nem com a mentira e a injúria distiladas por diversos outros segmentos da mídia internacional. Reza por todos. Perdoa-os no coração. Prefere cultivar a alegria do perdão. Coerente com o que sempre ensinou, reitera para nós: A Igreja nasceu do perdão. Precisamos da alegria de perdoar e de sermos perdoados. O perdão e sua realização, em nós, pela via da penitência e do seguimento de Cristo é, antes do mais, o centro pessoal de toda renovação (COMPREENDER A IGREJA HOJE – Ed. Vozes).

A alegria cristã é um tema ao qual retorna com freqüência.
Não se pense em “alegrias” alienantes. Não se confunda alegria com a fruição pela fruição, com “interesses privados”. Lembro que, inquirido por V. Messori, Ratzinger classificou de “infernal a cultura do Ocidente quando persuade as pessoas de que o único objetivo da vida são o prazer e o interesse privado”. Ele denunciava com veemência a cultura do funcional, do “tirar vantagem em tudo”, imposta pelo mundo do mercado, do capital e do lucro.
O tema da alegria é, para Ratzinger, aquele que brota da experiência que só o Senhor nosso Deus pode dar. Refere-se à alegria do acontecer do Reino, que compele à solidariedade e ao serviço dos irmãos. Sobretudo, ao serviço dos irmãos mais pobres e marginalizados. Trata-se da alegria interior que é experiência do amor e da paz. Daquela paz apaixonada e ativa que confere força para assumir no fundo do coração todo o sofrimento do mundo.
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“A Igreja está viva e é jovem!” Essa exclamação, da primeira homilia, é de uma espontaneidade plena e desvela, mais uma vez, a vida interior e a visão eclesial de Bento XVI. Reflete a convicção de que a alma, o coração do Povo de Deus jamais se fossiliza e jamais morre. A Fundação do Senhor é animada pela juventude eterna do Espírito Santo de Graça e Santidade. As fraquezas e traições de alguns ou de muitos de seus filhos, em dois mil anos de história, não conseguiram matar-lhe a vida e a juventude.

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Joseph Ratzinger é homem descomplicado. Homem de coração simples, alegre e bem humorado. Nada do “Panzer-Kardinal”, imaginado por articulistas que nunca leram uma linha sequer de suas obras e dele só têm o que ouviram de três ou quatro teólogos neo-liberais. Teólogos aos quais declarou que não lhes assiste o direito de se proclamarem professores de teologia católica, quando suas teses e seu agir contrastam com a fé católica.
Ridícula é a imaginação dos que pretendem passar a idéia de um hierarca com o título ultrapassado de purpurado ou com o título anacrônico de príncipe. Pior ainda quando o desenham como “príncipe acompanhado de seu séquito”. – Pela divulgação dessa imagem anacronizante são inocentemente responsáveis também jornais e algumas revistas católicas.
Quanto a Ratzinger, todos sabem que ele andava sozinho, de “clergiman” e palitó preto. Sem séquitos e sem púrpura. Não são poucos os romanos que o viam dirigindo seu pequeno automóvel pelas ruas de Roma.
Seus ex-alunos atestam que, no trato pessoal, nada de julgador havia nele. Nada da figura do inquisidor implacável.
Messori, que o observou e o entrevistou longamente, conta que o viu por vezes preocupado, mas que também muitas vezes o viu “rir à vontade”, comentando “tiradas curiosas e divertidas”. Acentua que seu senso de humor contrasta com qualquer esquema de inquisidor. Como contrasta com a imagem de inquisidor “sua capacidade de ouvir, sua disponibilidade em ser interrompido por perguntas e a prontidão em respondê-las todas com extrema franqueza, deixando que o gravador continue a girar” (Rapporto sulla fede).



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Educado, mas sem rodeios, impressiona os que tratam com ele, pela postura acolhedora e pelas afirmações e respostas claras, diretas, sem subterfúgios.
Sem rompantes autoritários, mas de fala e ações diretas, é adversário declarado e firme de outra carga destes tempos, a burocracia.
Note-se que sempre criticou a burocracia, a criação e recriação de planos em demasia, a multiplicação de organizações e departamentos burocráticos. E a crítica procede.
A burocracia esclerosa os condutos da graça e impede circule por eles a seiva interior. Aquela seiva que mantém a juventude da Igreja-mistério e lhe irriga a vida institucional, renovando-a, reformando-a. (Igreja-mistério e Igreja-instituição não são duas Igrejas. São duas faces da mesma realidade, Fundação do Senhor).
A força, a vida interior, a graça do Paráclito, que é a vida do mistério da Igreja, impede o envelhecimento e a morte de suas estruturas, compelindo-as a se reformarem continuamente. Lenta, mas continuamente.
É bem aquilo de Péguy: “Quando se diz que a Igreja recebeu promessas eternas, é preciso entender rigorosamente que ela recebeu a promessa de jamais sucumbir sob seu envelhecimento, sob seu endurecimento, (...). De não sucumbir jamais sob a rigidez (...) de sua burocracia” (Note Conjointe).

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O crachá de “conservador”, com desenho pejorativo, pelo qual querem identificá-lo, é uma sandice. Ratzinger é um homem aberto à mudança, a reformas necessárias, em tudo que seja mudável e reformável. Mais. É um promotor da atualização de tudo que precisa ser atualizado.
Quem o leu sabe disso. Um exemplo é o ensinamento de que o modo do exercício do múnus petrino é histórico e, portanto, mutável. No detalhe do exemplo: o exercício do ministério de Pedro não precisa ser centralizador como pretendem os maximalistas, os que vêem o ministério petrino como um poder monárquico absoluto. A concepção maximalista não se equaciona com a estrutura eclesial paleocristã. Os maximalistas despercebem que o ministério petrino é um serviço, instituído com vista à “necessitas Ecclesiae”.

Aquele que se torna Pedro hoje, não é dono “daquilo que foi recebido na origem”. É guarda e administrador. Não tem poder algum para cancelar ou alterar o que foi recebido dos Doze, como fundamental. Joseph Ratzinger repetia isso com freqüência. Suas formulações eram claras: “A Igreja não pode simplesmente fazer o que quer. O Papa não é um monarca absoluto. Deve obedecer à Palavra transmitida e à Tradição Apostólica, como todos os fiéis, e zelar por essa obediência”(Entrevista, 30DIAS, n. 1/1994, ps. 60/72.).

Merece por isso o crachá de “conservador”? Que sentido tem, dentro da Igreja, as categorias políticas “conservador” e “progressista”?
Condenar o assassinato de criancinhas no seio materno é ser “conservador”? Então é “conservador” também quem condena a violação dos direitos humanos.
Mas, “ele nega o direito da mulher ao ministério ordenado”. Tal afirmação revela ignorância completa sobre a matéria. Quem diz isso dessabe o que seja o ministério ordenado.
Direito ao ministério ordenado? Esse direito ninguém tem. Nem a mulher nem o homem. Ninguém.

O ministério ordenado não é um direito nem um poder. O Sacramento da Ordem, como ensinou o teólogo Joseph Ratzinger, não é uma atribuição de poder, mas uma expropriação do próprio “eu” em favor dAquele em cujo nome deve o ministro falar e agir. E ali onde a responsabilidade é maior, maior é a expropriação de seu “eu”, de modo que ninguém pode ser escravo do outro. Então, ali reina o Senhor, no qual acontece a liberdade da paz e da alegria.

O Sacramento da Ordem é dom de Deus para seu Povo. Um dos sinais pelos quais o Senhor cumpre a promessa de permanecer conosco até os tempos do fim. É por esse dom que se perpetua no tempo a presença tópica, localizável, do Senhor. No altar e no sacrário. Sob a humilde, mas concreta aparência. O ministério ordenado foi instituído em ordem à Eucaristia. Centro e força da “plebs adunata”, peregrinante para a Casa do Pai.
Reitero. Dom, gratuidade pura, ninguém tem direito a esse ministério. Nem o homem nem a mulher. Ninguém tem direito de exigir do Senhor que lhe outorgue o ministério sagrado de “fazer a Eucaristia”. O Senhor convoca a quem quer. E convoca para que o convocado se exproprie de si mesmo e sirva a seus irmãos. Não o dá para a “glória” de um indivíduo, de uma classe, de uma corporação ou de um dos termos do binômio “vir et mulier”. Muito menos para autorizar dominação. Se as duas partes da espécie constituem um binômio, constituem-no como binômio de reciprocidade. Não de antinomia ou de dependência que subjuga e algema. Desenha-se um binômio de interdependência recíproca, para a realização de um destino único. Idêntico. De um projeto de felicidade para todos. Já escrevi isso, que aprendi de Ratzinger, em outro lugar (Cultura e Fé, n. 60).
Ao escolher doze homens, varões, para testemunhas diretas e pilares de sua Igreja, dando-lhes o mandamento do “Fazei isto em memória de mim”, o Senhor agiu como Senhor e Deus. Como Deus que é Amor e sabe o que é melhor e o que convém. À Igreja só cabe a conduta obediencial. Pedro não pode mudar o que Senhor fez e ensinou.



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Parte da mídia européia, secularista e relativista, exportou comentários beócios, aos montes, para o terceiro mundo, antes e depois do conclave. Ignora a agudez da inteligência e o senso crítico do mundo economicamente dominado. Tratam tudo com as medidas do mercado e pensam que, por aqui, todos são privados da capacidade de pensar e de indignar-se, por força da desnutrição.

Falam do Bispo de Roma como se ele fosse um “maker”. Falam que a Igreja está perdendo clientes por falta de marketing liberalizante. O Bispo de Roma não é um “maker”. Não é um empresário. Nem a Igreja é uma empresa, que age e muda sob teorias de marketing, “para satisfazer consumidores” e “captar clientes” ou “sócios”.
É verdade que encontram, aqui, alguns simpatizantes inocentes. Mas estes, por mais que queiram transpor para dentro da Igreja o pensamento e a linguagem do mercado, não conseguirão. O Espírito Santo Paráclito fará com que os Bispos se unam para deter a invasão desfiguradora da identidade eclesial.
Os que tentam transplantar o conceito de qualidade total para dentro da Igreja, em função de uma pastoral que “agrade o cliente”, parece que já esqueceram a identidade da própria Igreja, sua causa, seu sentido e seu balizamento. Importam categorias do mundo da produção e do consumo, do econômico-financeiro do chamado primeiro mundo, numa superficialidade e vacuidade que causam mal-estar. Seus anúncios e propagandas, aos mais modernos estilos de atrair e de vender, causam dó, quando não repugnância espessa. Aí está o resultado da cultura da funcionalidade denunciada por Ratzinger freqüentemente.

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No que tange à busca da unidade, Ratzinger é dos que mais lucidamente apontam os caminhos possíveis, para realizá-la, dentro da verdade. Ele caracteriza a busca da unidade como um dever arrebatador do Sucessor de Pedro. Fará tudo o que for preciso para facilitar e recriar a unidade, sem negaças e sem falsidades. Ele é um homem da verdade. A unidade da Igreja não se constrói com acordos políticos. A fidelidade à Traditio Apostolica, ao Depositum Fidei, em uma visão ampla e atualizada das culturas e da história, fruto da oração e do estudo crítico, respeitoso e misericordioso, marca-lhe a atuação. Foi isso que me instigou sempre à leitura de seus livros, de suas conferências, de suas entrevistas e me levou a buscar nele as sínteses atualizadas das questões filosóficas e teológicas mais candentes. Ele, para mim, é aquilo que Inácio de Antioquia e Policarpo, Irineu e Atanásio, Ambrósio e Agostinho foram no seu tempo e, sob os aspectos fundamentais da fé, ainda são hoje.

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Chega de registros. Podemos conhecer melhor Bento XVI por aquilo que ele viveu intensamente como padre e bispo. Isso se encontra compendiado em um texto, no qual traçou a identidade conferida pelo Sacramento da Ordem ao ministro ordenado. O que vale para o ministro ordenado, aplica-se, no caso, ao bispo chamado ao ministério petrino.


Recordo e retranscrevo o texto inteiro:

– O sacerdócio do Novo Testamento instaurado com os Apóstolos tem uma estrutura inteiramente cristológica e significa inserção (específica) do homem na missão de Jesus Cristo. Uma ligação pessoal única com o Senhor constitui a essência e fundamento para o ministério sacerdotal. Daí depende tudo o mais. Nisto consiste toda a preparação para o sacerdócio e qualquer formação subseqüente.
O sacerdote deve ser um homem que conhece Jesus a partir de dentro. Homem que se encontrou com Ele e aprendeu a amá-lO. Por isto, o sacerdote deve ser, antes de tudo, um homem de oração. Sem este forte conteúdo espiritual, ele não é capaz de perseverar em seu ministério. Deve aprender também com o Senhor que o importante em sua vida não é sua auto-realização nem o sucesso. Deve aprender a não construir uma vida interessante e agradável para si. A não criar uma comunidade de admiradores e seguidores para si, mas a trabalhar para o Senhor, centro único de toda a pastoral.
A isto se opõe a tendência natural de nossa existência, mas com o tempo se perceberá que esta perda de importância do “eu” é que nos liberta verdadeiramente.
Quem trabalha para o Senhor sabe que é sempre um outro que semeia e um outro que colhe. Não precisa questionar-se a todo o momento. Qualquer que seja o resultado, ele o entrega ao Senhor nosso Deus e faz a sua parte despreocupadamente, livre e jubiloso, porque sua vida está integrada numa causa imensa.
Se os sacerdotes, hoje, se sentem extenuados, fatigados e frustrados, o motivo é uma busca crispada de eficiência. A fé se tornou um fardo pesado, difícil de arrastar, quando devia ser asas que nos transportam.
Da íntima comunhão com o Senhor brota a participação em seu amor pelos homens e em seu desejo de salvá-los e ajudá-los. Hoje muitos sacerdotes duvidam se fazemos verdadeiramente bem às pessoas quando as guiamos para a fé, ou se, deste modo, não estamos tornando pesada a sua vida..
Quando a fé é vista como um peso adicional que dificulta a vida, ela não pode tornar alguém feliz. Então, servir à causa da fé já não traz alegria. Quem, entretanto, descobriu o Senhor a partir de dentro, quem O conhece de primeira mão, descobre a Força renovadora que confere sentido a todas as coisas e torna grandioso até o que é difícil. Somente uma alegria como esta, por causa do Senhor, é capaz de irrigar de alegria o ministério e torná-lo vivificante.
Quem ama deseja conhecer. Por isto, do verdadeiro amor do Senhor nasce o desejo de conhecê-lo cada vez melhor. A ele e a tudo o que Lhe pertence. Como o Senhor jamais se acha só, mas veio para unir a todos em seu corpo, acrescenta-se mais um componente (da identidade do sacerdote): o amor a sua Igreja.
Não procuramos um Cristo inventado por nós mesmos. Somente na verdadeira Igreja é que encontramos o Cristo verdadeiro. E, mais uma vez, na prontidão em amar a Igreja, em viver com ela e servir ao Senhor dentro dela, é que se revelam a profundidade e a seriedade da relação com o próprio Senhor. – (COMPREENDER A IGREJA HOJE, p. 72, Vozes, 1992. Podemos encontrar equivalentes em TEORIA DE LOS PRINCIPIOS TEOLÓGICOS e CURSO DE TEOLOGIA DOGMÁTICA, ESCATOLOGIA, J. Ratzinger, Herder, Barcelona).

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Pelo texto reproduzido se conhece quem é o ducentésimo sexagésimo quinto Sucessor de Pedro, sinal da unidade do Colegiado dos Bispos. Nele se verifica, realmente, o versículo da Escritura citado ao início destes apontamentos.
O texto espelha Bento XVI muito melhor do que todos os registros por mim feitos.
“Gloria in excelsis Deo! Et pax hominibus!”

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Invoco o grande momento. Era 19 de abril deste ano de 2005.
“Annuntio vobis gaudium magnum; habemus Papam: Eminentissimum ac Reverendissimum Dominum, Dominum Josephum Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Ratzinger qui sibi nomen imposuit Benedictum XVI”.

Com Bento XVI a alegria se restabelece no coração católico, após a tristeza com a morte de João Paulo. Por um e pelo outro, entoa o Povo de Deus o hino da gratidão e da esperança. “Minha alma engrandece o Senhor. Meu espírito exulta em Deus, meu Salvador” (Lc 1,46 e ss). Gratidão imensa para com o Espírito Santo de Deus, o Paráclito, que conduz a Fundação do Senhor rumo à Casa do Pai, à Pátria Trinitária.
Brota espontânea do coração católico a doxologia do Espírito Santo de Graça, do Ruah da Verdade, do Pneuma da Vida, Sopro que anima, aquece e rejuvenesce a Igreja..

Miserere nobis, Domine, secundum magnam misericordiam tuam.
Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix.

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