terça-feira, 29 de julho de 2008

FÉ CRISTÃ - REGISTROS SOBRE OS FUNDAMENTOS

FÉ CRISTÃ - REGISTROS SOBRE OS FUNDAMENTOS

Eno Dias de Castro
Sem preocupação com sistematização rigorosa, tento alguns registros sobre a matéria que o título anuncia. Todo o cristão medianamente informado conhece os fundamentos de sua fé. Entretanto, não raramente, satisfeitos com nossos diplomas, “o que foi recebido” fica num desvão da memória e lentamente se desvigora. Aí, por vezes, somos surpreendidos por teorias “‘modernas” ou “pós-modernas” e começamos a gaguejar. Conscientes de nossa fragilidade, nós todos, leigos e também os ministros ordenados, percebemos quanto precisamos relembrar, atualizar e rezar os fundamentos de nossa fé. É verdade que a Igreja nos recorda sempre e reza esses fundamentos, na liturgia das horas e na celebração da Sagrada Eucaristia. Mas ainda aí há o risco da rotina, que destonifica a vida. Essa é uma das marcas, gravadas em nós desde o pecado da espécie acontecido na origem. Foi pensando nisso que um sacerdote segundo o Coração do Senhor me sugeriu fizesse o trabalho que agora vou tentar.

I - OS REGISTROS

1. O ato fundamental da fé cristã é aquele ato pelo qual reconhecemos o Senhor Jesus Cristo como Filho de Deus e a Ele aderimos. Ato que acontece por um encontro, mediado pela palavra que anuncia o Senhor. Se estamos livres para acolhê-la, o encontro na fé acontece.

Esse encontro se dá de maneira multiforme, segundo o modo de ser de cada um. Há nele, entretanto, algo de fundamental, comum a todos: a adesão que transforma a vida.

Não se trata, primeiramente, de adesão a uma doutrina, mas a uma pessoa. À Pessoa do Senhor Jesus Cristo, reconhecido e confessado como Filho Unigênito do Pai, que assumiu a condição humana para nos remir e comunicar o seu Espírito. É por conseqüência que aceitamos o que Ele ensinou, determinou e fundou.

* * *

A fé cristã, adesão incondicional ao Senhor Jesus Cristo, é dom do Pai, que nos move a reconhecê-lO e a Ele aderirmos.

Com Pedro, confessamos: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). “A quem iremos? Só Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 67-68). E, com Tomé, proclamamos: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28).
Dom, gratuidade pura, oferecida a todos, não é “a carne nem o sangue” que nos impelem a aderir ao Senhor (Mt 16,17).
Não se trata de um simples “ficar sabendo”. É ato que compromete e constitui adesão para valer. É acolhimento e seguimento. Mesmo sabendo que “as raposas têm suas tocas e as aves do céu seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça”. Mesmo alertados do despojamento que implica.

É resposta livre de uma vontade livre, pulsionada pela Graça, pelo Amor, na alegria da fé.

Embarcamos sem divisar a outra margem, sem conhecer qual o porto imediato. Com a única certeza dos que sabem em quem puseram sua esperança, decidimos e embarcamos. Não se trata de sentimentos mutáveis com o humor. O encontro na fé, por graça, nos comunica a audácia que a cultura hedônica do funcional não entende. Os doutores da funcionalidade diagnosticam isso como insânia.

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Sendo dom, a fé pressupõe sempre a moção interior do Espírito Santo de Graça e de Coragem. É que na grande Revelação há duas realidades: a palavra e a unção interior. A Palavra exprime, a Graça imprime e move. Graça que se dá a todos quantos buscam a fina lâmina da Verdade.
O anúncio do Senhor, que salva por amor, não é arbitrário, sem fundamento objetivo algum. A fé não é fideísmo.
Nossa adesão não é pulsão sentimental de um momento. Radica-se num fato objetivo, histórico. Na experiência empírica dos Doze, relativa à vida, pregação, perseguição, prisão, tortura, condenação iníqua, morte e ressurreição do Senhor.

2. A fé cristã, católica, se alicerça na Revelação pública do Testamento Novo, testemunhada pelos Apóstolos. Verificável pelo testemunho, pelos sinais e pela ação interior do Espírito Santo de Graça e de Verdade.
Funda-se no que nos entregaram os Doze, constituídos testemunhas pelo próprio Senhor Jesus Cristo, os quais dEle receberam a missão de transmiti-la íntegra a todos os povos, até o fim dos tempos (Mt 28, 16-20; Mc 16, 15-16; Lc 24,47).

Todo o cristão consciente de sua fé sabe que a Revelação pública do Novo Testamento é a automanifestação de Deus, na história do homem. Acontecida em Jesus Cristo, Verbo Eterno do Pai, consubstancial ao Pai, Palavra de Deus que se comunica ao homem. No Senhor Jesus, Deus vem, ao nosso encontro. Fala conosco. Torna manifesto o seu Amor e nos convida à comunhão com Ele.

A Revelação é ato da Trindade Santíssima. Dela o Pai é a fonte. O Filho, o mediador, que a realiza, ao assumir a condição humana. O Espírito Santo de Graça, o que abre a inteligência e o coração do homem para recebê-la e vivê-la.
O Senhor Deus poderia ter deixado o homem entregue à limitada luz da razão, apenas socorrendo-o por sua providência geral. Aí, diante dele, estaria a criação toda, o universo contingente, como pista para a inteligência humana descobrir a sua origem e tirar conclusões. Ante a devastação produzida pela ruptura do pecado original, o Senhor nosso Deus foi movido por seu amor misericordioso. Não só para sanar o abismo da separação, mas também para revelar esse amor e iluminar o caminho da volta.

A automanifestação de Deus ao homem, se desenha, assim, como gratuidade pura, que faz jorrar a água viva das fontes eternas da Trindade para tornar o homem participante da própria da Vida Trinitária, verdade, justiça e amor. Ternura infinita, sem fim. Plenitude. Alegria da Fonte da Vida.

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A Revelação é comunicação. O Senhor Deus rompe o silêncio de seu Mistério e desvela o segredo de sua vida pessoal. Dirige-se ao homem e lhe transmite seu desígnio de uma aliança que significa comunhão de vida. O Deus vivo vem ao encontro do homem. Na história e na geografia do homem. Desvela-se, propõe, comunica-se, esperando uma resposta.

A Revelação é Palavra. Palavra viva. Podemos talvez dizer que a natureza da Revelação é ser comunicação, palavra. “Dabar”, em hebraico, segundo os entendidos.

“Dabar”. Sem entrar na etimologia, um tanto tormentosa, faço digressão, que parece útil. Assumo o que diz Latourelle, quando ensina, em “Teologia da Revelação”, que “dabar é o que sai da boca”. Ou “dos lábios”. “Aquilo que sai dos lábios do homem, mas tem sua origem no coração”. Ou também, “o que se radica em sua alma e se manifesta pelos lábios”. O “dabar” exterioriza aquilo que o homem já proferiu em seu alma, em seu coração.

Assim, a palavra não é apenas transmissão de idéias abstratas. Tem densidade própria. Sob a palavra subsiste a totalidade da pessoa que a proferiu. É epifania de uma totalidade. “Pela palavra partilho minha interioridade com meu interlocutor. Tem ela a espessura de um prolongamento de mim mesmo” (Alonso Schökel).

Para o hebreu era mais que a expressão de um pensamento, mais que discurso inteligível. Era força atuante, energia que busca realizar aquilo que significa, operar aquilo que o homem tem em seu coração. Isso acontece tanto mais eficazmente quanto mais forte quem profere a palavra. Essa eficácia é plena quando o “dabar” vem do Senhor nosso Deus.

Compreende-se o realismo que a palavra tinha para o hebreu, quando se lê a respeito das bênçãos e maldições no Testamento Antigo.

O “dabar” era tido como portador de um poder tal que, proferido, adquiria entidade própria e continuava a existir e a operar. Por isso mesmo consta da Escritura, várias vezes, em paralelismo com “ruah” (vento, hálito, sopro, espírito). “Dabar” não se dizia somente da idéia manifestada, mas de coisa com existência objetiva. Isso era o que tornava possível o realismo que lhe atribuía o povo judeu.

Em Javé a palavra é idéia expressa e dinamismo operante. Proferida por Javé, a palavra não só tenta realizar, mas realiza aquilo que significa. Tem força comunicante, ordenadora, realizadora e salvífica. Isso é efetivamente real no plano do divino. Deus a profere, envia-a , como um mensageiro vivo, ficando atento a seu cumprimento. Deus é para sempre fiel à sua palavra. Deus jamais fala por falar. Nada do que Ele diz ou anuncia desimporta. Daí, o respeito fundo que se impõe ao homem, fronte a fronte com a palavra do Senhor nosso Deus. A palavra do Senhor é criadora e se faz lei. Daí a responsabilidade daqueles que desprezam a profecia e “matam” os profetas.

Na ordem do conhecimento, todo o projeto salvífico do Senhor nosso Deus configura-se na Palavra. Nessa ordem, ela é a primeira realidade fundante da fé, o primeiro mistério, a primeira categoria. Mas, a Palavra suprema de Deus ao homem, na realização do projeto divino, é o próprio Verbo que assumiu a carne do homem, no seio da Virgem Bendita. É o Crucificado-Ressuscitado.


* * *

O fundamento decisivo que confirmou e pulsionou os Doze foi a Ressurreição, aclarada definitivamente em Pentecostes.

Pentecostes foi o acontecimento que fundou a Igreja, testemunha e missionária, outorgando aos Doze a plena compreensão do projeto do Senhor. Acontecimento que transmudou o medo e a timidez em coragem e audácia. Fato pelo qual se cumpre a “promessa” anotada por Mateus (16, 17, ss.) e ergue Pedro, como sinal para sempre. – Aquele que vós matastes ressuscitou ... Somos testemunhas do Ressuscitado ... O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos ... Não temos ouro nem prata, mas o que temos te damos: Em nome de Jesus Cristo, levanta- te e anda .... - O anúncio, o testemunho e os sinais estão ali. Tornando a fé verificável.

Dali em diante começa a cumprir-se o que o Senhor prometera (At 1,8). Nem a prisão nem a morte iria impedir a missão dos Doze. O Império Romano iria render-se ao Senhor, pela força do Espírito Santo de Graça e de Audácia, recebido em Pentecostes. Só isso explica a queda do poder dos Césares, que se desfez pela força do testemunho ratificado no martírio. Mataram os cristãos, mas o Cristianismo conquistou o Império Romano. O registro de Tertuliano é verdadeiro. O sangue dos mártires gera vida. É semente de cristãos.


3. O testemunho implica radicação na história e faz história. Postula fidelidade à experiência vivida e coragem para atestá-la..

Já se disse. A nossa fé não se funda em lendas e fantasias. A Revelação normativa aconteceu na história. Em lugar e tempo precisos. Não em sonhos mirabolantes de “iluminados”.

O lugar?
Foi ali, no Oriente Médio. Belém da Judéia. Depois, Nazaré, Cafarnaum, Tiberíades. Siquém de Samaria. Betânia, Jerusalém, na Judéia. Nada de fantasias geográficas. Ali nasceu o Senhor Jesus. Ali viveu, pregou, realizou os sinais. Ali foi perseguido, preso, torturado, iniquamente condenado e morto. E também ali ressuscitou glorioso e, ressuscitado, vivo, apareceu a testemunhas, que deram a vida para testemunhar. Conhecemos os nomes de seus discípulos escolhidos, de sua Mãe Bendita e de seu pai adotivo.

O tempo?
O tempo é bem determinado. Foi no tempo do Império Romano. Sob César Augusto e Tibério César. Governava a Judéia Pôncio Pilatos; Herodes, a Galiléia; Filipe, a Ituréia; Lisânias, Abilene. A autoridade maior dos judeus era Caifás. Conhecemos a história de seu tempo, de seu povo, da Igreja que Ele mesmo fundou.
Os Apóstolos, testemunhas diretas do Senhor, não fizeram só “kérigma” e teologia. Cimentaram o anúncio nos fatos e os testemunharam fielmente com a própria vida.


4. Jesus histórico não é um “sussurro no ventre da lenda”, como pretendia Bultmann. É um brado no coração do tempo.

A Revelação do Senhor constitui um fato inafastável, o “fato cristão”, inscrito na história. Como proclama Marcos (1,1), a Revelação do Testamento Novo é a Revelação de Jesus Cristo. Não criação das comunidades primitivas. Jesus Cristo, Verbo Eterno do Pai, Deus e Homem verdadeiro, é a Revelação, na qual nossa fé insere suas raízes. Nada de lendas. Nada de imaginário popular.

Nada de “formas literárias” criadas anonimamente nas comunidades helênicas, somente tardiamente coligidas pelos evangelistas. Nada daquilo que ensinam por aí, na pretensão já ultrapassada da crítica liberal-racionalista, bolada no século XVIII, ou do método crítico radical deste século XX, indevidamente aplicado aos Evangelhos, já implodido pelas últimas descobertas papirológicas.
Lembro as descobertas da gruta 7 de Kibert Qumran, na margem Ocidental do Mar Morto. Graças a José O’Callaghan, cristão, padre e cientista, paleólogo e papirólogo, que identificou o papiro 7Q5 como Mc 6, 52-53. Com essa descoberta científica ficou definitivamente assentado que antes do ano 50 D.C. já existiam cópias do Evangelho de Marcos. A Tradição da Igreja, agredida a partir do séc. XVIII, foi confirmada.

As pesquisas de Carsten Peter Thiede, também papirólogo, cientista independente, corroboraram O’Callaghan e implodiram o silêncio da chamada “comunidade científica”. O simpósio internacional, de 1991, provocado por Thiede, também ratificou O’Callaghan. Isso, sem falar nos papiros de Magdalen, Oxford, reestudados por Carsten Peter Thiede e datados da primeira metade do séc. I. Apesar de tudo isso, pregadores brasileiros, “doutorados” na Europa, ainda tentam passar ao povo “dogmas liberais”. Parece que ignoram sua implosão.


5. A Tradição não podia vacilar. E não pode.

Tínhamos e temos fatos. Testemunhas. Não lendas. Não comunidades anônimas animadas por imaginativa popular. Os Apóstolos transmitiram o que viram e ouviram. E vigiaram para que nada de fundamental fosse alterado ou cancelado.
João proclama: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos tocaram da Palavra da vida (...) damos testemunho (...). O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos” (1Jo 1,1-4).
Pedro confirma: “Não foi seguindo fábulas, mas por termos sido testemunhas oculares é que vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Pd 1,16).
Paulo demonstra, com veemência, como as testemunhas vigiavam, para que nada fosse distorcido: “Se alguém - ainda que nós mesmos ou um anjo do céu - vos anunciar um evangelho diferente, seja anátema” (Gal 1,8).
O querigma da era apostólica, enraizado nos fatos, que muitos contemporâneos ainda lembravam, confirmava-se por sinais irrecusáveis do poder do Senhor do qual estavam investidos os discípulos.

6. Hoje, quem nos garante a Revelação autêntica e inteira?

Na era apostólica não pode haver dúvida séria sobre o testemunho da Revelação Pública do Senhor. Os órgãos garantidores da verdade do anúncio eram as próprias testemunhas diretas. Os Doze, a quem o Senhor comunicara a estrutura de sua missão, conferindo-lhes o poder-dever, vinculando-os ao seu próprio poder. Vinculação que capacitava os Apóstolos a fazer aquilo que por si mesmos não poderiam, mas que o Senhor operava através deles, com sinais. E, na sua época, viviam ainda muitos que haviam participado dos fatos e também testemunhavam que eles diziam a verdade. Mas, agora, depois de dois mil anos, onde encontramos com segurança a grande Revelação?

Antes, um registro preliminar para este tópico.
Se nos inquirimos sobre a gênese de nossa fé, verificamos que ela decorre de uma experiência pessoal e comunitária ao mesmo tempo.
Cada um pode dizer: É a minha experiência. Fui eu que ouvi, fui atingido pela Palavra e aderi. Mas, ao mesmo tempo, tem que reconhecer ter ouvido a Palavra em uma comunidade e de uma comunidade. E sabe que aquela comunidade estava inserida em uma comunidade maior, tão ampla quanto o universo, verdadeiramente católica. Fundação do Senhor constituída da grande comunhão cujo sinal de unidade é Pedro. A referência é sempre a Sé de Pedro, na qual subsiste seguramente a Fundação do Senhor.
Como já referi em outra oportunidade, católica, universal, a Igreja do Senhor é diacrônica. Atravessa o tempo. Não se constitui somente daqueles que ainda peregrinam. Compõe-se também daqueles que já chegaram à Pátria Trinitária e daqueles que se purificam no purgatório. Diacrônica é isso. (O termo vem do grego. “Diá” significa “através de”; “ó xrónus”, o tempo.)
Por diacrônica, a Igreja do Senhor, ainda hoje e sempre, pode dizer com toda a verdade: Eu vos anuncio a Salvação que eu mesmo vi. Foi vendo, ouvindo e tocando que eu fiz a experiência do Verbo da Vida. Sou testemunha do Ressuscitado. As portas do Abismo não prevalecerão contra mim, não pelo valor dos homens, mas por força da “promessa”. Promessa constante de Mt 16,17 ss., ratificada em Jo 21, 15 ss.


Insista-se na pergunta.

Ao passarmos à era pós-apostólica onde encontramos a segurança da Revelação? Se na era apostólica estavam lá os Apóstolos, como vigias daquilo que testemunharam e transmitiam, como termos segurança, depois, na era que os sucedeu?

Já se apontou a resposta, ao sinalar a diacronicidade da Igreja e ao lembrar a “promessa” e a ratificação. Além disso, não se deslembre que o próprio Senhor ordenara que o Evangelho fosse pregado até o fim dos tempos, a todos os povos. Por toda evidência, o anúncio deveria continuar após a morte dos Apóstolos, com a garantia da promessa de que Ele estaria com sua Igreja para sempre.

Importa é ver agora como se desenhou a garantia da “promessa”, na concretude da história, após extintas as “Colunas”. Vale relembrar testemunhos da transição de uma era para a outra.

Clemente Romano, terceiro sucessor de Pedro, na Sé de Roma, testemunha no ano 95: “Os Apóstolos receberam a Boa Nova da parte do Senhor Jesus Cristo (...) Munidos de instruções (...), confiados na Palavra de Deus, saíram a evangelizar (...) Proclamando a Palavra no interior das cidades, estabeleceram homens escolhidos como bispos dos futuros fiéis (...) Como tivessem perfeito conhecimento do porvir, estabeleceram (bispos) e deram instruções, para que, após a morte deles, outros homens comprovados os sucedessem em seu ministério” (Carta à Igreja de Corinto, 42, p. 48, trad. do grego, por Paulo Evaristo Arns, ed. Vozes, 1971).

Está aí o vínculo da sucessão apostólica. Uma das marcas da Fundação do Senhor, que nos aponta a providência tomada pelos Doze para garantir a perpetuação da tradição da origem. Tradição é sempre tradição da origem.
Lembre-se que não havia sido outra a providência de Paulo.

Quando escreveu a Tito, registrou: “Eu te deixei em Creta para acabares de organizar tudo e, ao mesmo tempo, para que constituas presbíteros em cada cidade, de acordo com as normas que tracei” (Tt 1,5).

O encadeamento sucessório não poderia interromper-se. Era constitutivo e identificador da Fundação do Senhor. Era a forma determinada pelos Apóstolos para garantir a “promessa” feita em Mateus (16,17 ss.). Era o meio de garantir a tradição autêntica.

Testemunho forte do tempo pós-apostólico, séc. II, que relembro sempre, é o de Irineu: “A tradição dos Apóstolos, que foi manifestada no mundo inteiro, pode ser descoberta em todas as Igrejas, por todos os que queiram ver a verdade. Poderíamos enumerar aqui os bispos que foram estabelecidos nas Igrejas pelos Apóstolos e os seus sucessores até nós (...) Como seria longo demais enumerar as sucessões em todas as Igrejas, limitar-nos-emos à Igreja maior. À mais conhecida e mais antiga de todas (sob os aspecto da referência para as demais). À Igreja constituída pelos dois gloriosos Apóstolos Pedro e Paulo, em Roma. Àquela que tem a tradição dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens e que chegou até nós pela sucessão dos bispos. Assim confundiremos todos quantos (...) se juntam indevidamente em outras partes. É com essa Igreja, por causa de sua autorizada primazia, que deve harmonizar-se toda a Igreja, os fiéis de todos os lugares. Ela é aquela na qual sempre foi conservada a tradição dos Apóstolos” (Adversus Haereses, III 3,1-2).

É aí, na Sé de Pedro, que encontramos com segurança a guardiã da Revelação testemunhada pelos Doze. A Igreja unida a Pedro, hoje João Paulo II, é o lugar de nossa certeza.


7. A Revelação do Testamento Novo se contém na Escritura e na Tradição apostólica oral. E quem nos garante a autenticidade de ambas e as interpreta com autoridade verdadeira, verdadeiro serviço ao homem, é a Igreja-testemunha.

Uma palavra da Escritura é válida porque integra a Escritura. E, por sua vez, a Escritura é válida porque integra o cânon assegurado pela Igreja (Ratzinger).
Os livros que constituem a Escritura do NT são livros da Igreja. Nela foram redigidos e a ela é que foram entregues. Ela é sua intérprete e guarda.
Primeiro foi o Senhor Jesus Cristo e os Apóstolos, suas testemunhas. Depois, a Igreja fundada sobre os Apóstolos. E, na Igreja, é que foram redigidos os escritos neotestamentários da Escritura, objetivando no papiro e no pergaminho a Revelação pública, normativa, da Nova Aliança.

* * *

Quando o risco da deturpação se acentuou, a Igreja fez a triagem e estabeleceu o cânon dos livros de origem apostólica autêntica.
“Cânon”, do grego “kanón”, significa “régua de caniço”, medida. No caso, o cânon dos escritos neotestamentários, é o rol, a lista dos livros, que a Igreja identificou como de origem apostólica e inspirados.

Já pelo fim da era apostólica se ressalvavam os escritos autênticos, contra os escritos gnósticos que começavam a despontar.

Na segunda epístola de Pedro se supunha conhecida uma coleção das cartas de Paulo. Clemente Romano, no fim do séc. I, o confirma. Policarpo, na primeira metade do séc. II, também. Inácio de Antioquia, na transição do séc. I para o séc. II, mencionava formalmente uma coleção dos evangelhos. O mesmo faz Justino, pela metade do séc. II. O Diatesseron de Taciano o corrobora, em 172. Irineu, por volta de 180, assinala expressamente os livros contidos no cânon e os cita constantemente. O herege Marcião, ao rejeitar o cânon, no séc. II, não faz mais do que demonstrar que a Igreja zelava pelos livros canônicos. Lista formal dos livros acolhidos e aprovados pela Igreja já se encontrava no mesmo séc. II, através do “Cânon de Muratori”, “Fragmentum Muratorianum”. No Oriente, a carta quaresmal de Atanásio, de 367, e, no Ocidente, o Sínodo de Roma, 382, comprovam a existência da lista bem definida dos livros reconhecidos pela Igreja.

Pelo testemunho externo dos Padres e escritores eclesiásticos dos primeiros séculos, e até, pelo inverso, através das oposições heréticas, já podíamos ter a segurança dos escritos novotestamentários, tidos pela Igreja como autênticos. Os Concílios de Trento e do Vaticano I ratificaram em definitivo essa segurança.


II - REITERANDO E TENTANDO ACLARAR ALGUNS TERMOS

1. “Traditio”. Refiro-me à Tradição oral. EssaTradição é aquilo que a Igreja recebeu dos Apóstolos, pela transmissão oral, relativo ao fundamental da Revelação, norma da fé e da vida cristã. Na “Traditio” e na Escritura está o “Depositum Fidei”, o Depósito da Fé. Depósito, aqui, não é um arquivo morto, mas vida a ser conservada e transmitida. Esse “Depósito” foi entregue à Igreja. A Igreja toda é depositária, mas se exprime pelos órgãos constituídos pelos próprios Apóstolos, cujo sinal de unidade é Pedro. Esses órgãos, que hoje identificamos como investidos no Magistério hierárquico, constituem-se pelo Colegiado dos Bispos, sucessor do Colégio Apostólico, em comunhão com o Sucessor de Pedro.

“A sucessão, na forma sacramental da imposição das mãos é constitutiva para a própria existência e continuidade da Igreja” (Ratzinger, “Teoría de los Principios Teológicos”). A Sucessão Apostólica é a forma da Tradição. O modo, o canal pelo qual se transmite conservada e viva.


2. “Os Padres”. “Santos Padres” ou “Pais da Igreja”. São os escritores cristãos, bispos, presbíteros e leigos, que testemunharam a fé apostólica nos primeiros séculos, em escritos autênticos, e tiveram aprovação da Igreja toda, pela ortodoxia de doutrina (retidão de doutrina), santidade de vida e antigüidade (proximidade das origens).

Ao longo dos primeiros séculos, os “Padres” foram testemunhando, confirmando e defendendo a fé, a liturgia, a disciplina, os costumes, as verdades cristãs, num elo contínuo com a primeira geração da fé. Entre eles ressaem os “Padres Apostólicos”. Aqueles que, de alguma forma, foram discípulos dos próprios Apóstolos, como Clemente de Roma, Inácio de Antioquia e Policarpo de Esmirna. Por extensão, Irineu de Lião, que foi discípulo de Policarpo e nos conta como conviveu com ele, por ele foi ensinado e dele ouviu o que recebera diretamente do Apóstolo João.

Escritor eclesiástico, importante pela antigüidade, embora não seja conumerado entre os “Padres”, é Pápias, bispo de Hierápolis. Dele temos o testemunho externo da autenticidade dos Evangelhos de Mateus e Marcos. É ele um dos que nos certifica de que Mateus escreveu o evangelho em dialeto hebraico, bem nos começos, e que Marcos redigiu o que ouviu de Pedro. Pápias diz isso, nos primeiros anos do séc. II, fato que o situa desde as últimas décadas do séc. I e o sinala como contemporâneo pelo menos do Apóstolo João.


3. O Magistério. Reitero o que já apontei antes, indicando os investidos nele como órgãos da conservação e da transmissão dos fundamentos da fé. A sucessão apostólica, instituída como modo da Tradição, assegurada na forma sacramental da imposição das mãos (ordenação dos bispos legítimos), constitui dom decisivo para o Povo de Deus. Dom do Colegiado dos Bispos em comunhão com o sucessor de Pedro.

Lembro momento antigo que atesta o reconhecimento da importância do Magistério. Cipriano, grande Padre da Igreja do séc. III, pretendia que se batizassem novamente os que se convertiam à Igreja Católica e que haviam sido batizados em comunidades cristãs separadas. Estêvão, 23º sucessor de Pedro (254-257), invocando e defendendo a Tradição, firmou que o batismo, uma vez conferido corretamente, valia para sempre. Era o Magistério prevalecendo e garantindo.

Lembro ainda os Concílios fundamentais dos primeiros séculos, onde ficou marcada irrevogavelmente a função do Magistério. Não se pode esquecer a “Epistola Dogmatica ad Flavianum”, enviada por Leão Magno, por ocasião do Concílio de Calcedônia (451), onde se reconheceu que “Pedro falou pela boca de Leão”.

Importa marcar que os órgãos da Igreja investidos no Magistério não são donos da Revelação. A eles cabe escutar e proclamar a Palavra da Vida. A escuta humilde e orante lhes possibilita exercer o carisma recebido, o poder-dever de interpretar e ensinar, como serviço ao Povo de Deus. Não são os diplomas que lhes conferem autoridade, mas o dom recebido na “imposição da mãos”, o carisma do Espírito Santo de Graça, continuamente vivo na fé, na oração humilde e no serviço aos irmãos.

Para fechar este tópico, invoco a Constituição “Dei Verbum”, documento-chave que o Concílio Vaticano II nos legou. No proêmio majestoso os Padres Conciliares nos deixaram uma síntese da Revelação e da função magisterial. Iniciam, com texto de 1Jo 1,2-3: “Por isso, atestamos e vos anunciamos a Vida eterna, que estava junto do Pai e nos apareceu (...)”. Aí está o conteúdo da Revelação e a missão do Magistério face à Revelação pública normativa. A Revelação é a “Vida Eterna”, o Verbo da Vida “que estava junto do Pai e nos apareceu”. O “atestamos e vos anunciamos”, a missão do Magistério.


4. A Revelação pública, normativa, que é o próprio Senhor Jesus Cristo, funda a nossa fé. Fé recebida pelos testemunho dos Apóstolos, constituídos pelo Senhor para testemunhá-la a todos os povos, até os tempos do fim. Revelação entregue à Igreja-testemunha, a qual a guarda e transmite, com a segurança magisterial da sucessão apostólica legítima, proclamando “aquilo que foi recebido”, na Tradição e na Escritura.

Isso não é teoria estéril nem intelectualismo forjado. É vida. Vida que verte da Vida Trinitária e se realiza na história do homem. Aí temos dois mil anos de testemunho de legiões de santos, canonizados ou não. Testemunho de doação de vida, na alegria da fé, cento e cento de vezes selada com o próprio sangue.


5. A fé cristã não se alicerça no valor dos homens, mas no Verbo Eterno de Deus. Não é a hipertrofia dos métodos que vão suprir ausência ou atrofia de conteúdos. Nossa fé não é produto de mercado, garantido por “marketing”. Só o fogo de Pentecostes dá vida à palavra do anunciador. Veja-se João Paulo II. Limitado por fundas limitações físicas, irradia a segurança, a paz e a alegria do Senhor nosso Deus. É Pentecostes para a humanidade toda. Isso não vem dele Vem do Senhor que nele habita. Segundo o modelo da Mãe Bendita, a quem ele entregou a vida e o ministério.

Quando o intelectualismo racionalista prevalece em nós e hipertrofiamos os métodos e os planos pastorais, só complicamos a vida. Fazemos pregação estéril. Sem o testemunho de fidelidade à “Traditio”, sem o Espírito Santo de Graça, não há vida em nossa palavra. A Tradição é a garantia de que permanecemos na vertente da origem. O Espírito Santo é o dinamismo da origem. É a força interior da Igreja. O poder da palavra e do testemunho. Fora da Tradição verdadeira, testemunhada, não por exegetas novidadeiros, mas pela Igreja, rio profundo alimentado pelo Espírito que procede do Pai e do Filho, só geramos desertos.



III - CONCLUINDO


Para concluir, relembro um catecismo francês. “Pierres Vivantes”.

Por falha da Congregação para o Clero, como declarou, em 1990, o Cardeal Sílvio Oddi, aquele catecismo foi aprovado “ad experimentum”. Um desastre em matéria de fundamentação da fé. Ambigüidades e omissões, a olho nu. O pecado original, por exemplo, não era citado uma só vez, por esse nome. Apenas foi indicado em uma nota. Modestíssima. Ainda em exemplo, abria um capítulo sobre a fundamentação da fé, dizendo: “Um dia um grupo de sábios se reuniu para estabelecer a verdadeira religião”. Como se fosse possível chegar à Revelação cristã através de consensos humanos ou plebiscitos. Observe-se bem. Quem declarou isso, em crítica candente, foi o próprio então Prefeito da Congregação para o Clero.

Em entrevista dada a órgão da imprensa italiana, o Cardeal Oddi recordou quanto vibrara, quando o Cardeal Ratzinger, em 1983, publicamente, em plena Catedral de Notre-Dame de Paris, criticou duramente o “Pierres Vivantes”, deixando estupefato o episcopado francês.

Felizmente temos hoje o Catecismo da Igreja Católica, que constitui um limite a desvios intelectualistas e vazios. Seria bom que o estudássemos. Embora não o cite aqui, confio ter, por graça, o seu conteúdo como parte de mim mesmo. E, se isso for verdade, devo a um ancião santo, que já chegou à Pátria Trinitária e que, por primeiro, me anunciou o Senhor. Por gratidão, lembro seu nome, neste passo: Pe. Jorge Sedelmayer S.J., pregador de retiros inacianos, no velho Anchieta. Depois dele não ouvi muitos insistirem tanto nos fundamentos da fé. Os sucessores de Pedro, sim. Refiro, entre eles, o santo Paulo VI. Fez isto sempre. De sua alma jorrou o “Credo do Povo de Deus”, que deveríamos de quando em vez rezar. João Paulo II igualmente o faz. Leia-se a “Splendor veritatis” ou outros documentos de sua mão. Ele constantemente volta aos fundamentos. Como os grandes profetas de hoje, fiéis à Fé Apostólica.

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