terça-feira, 29 de julho de 2008

TU ÉS PEDRO
Publicado em Cultura e Fé

Eno Dias de Castro


O primado de Pedro ressai como um fato inarredável à simples leitura dos escritos neotestamentários. Nenhuma especialização se requer para apreendê-lo. Suscitam-se questões apenas quanto ao conteúdo dessa primazia e sua projeção no tempo. E mais veementemente, no que diz com a identificação local dessa projeção.

Relembro a evidência do fato e faço registros relativos às questões que ainda se levantam.

* * *

O fato do primado se desenha nítido no conjunto neotestamentário.

Começando com Paulo, encontra-se em 1Cor 15, 3-6, a reprodução de profissão de fé vinda das origens. Paulo seguramente a colheu na fonte que vertia dos Doze.

Naquele “Credo” de valor especial pelo arcaísmo, professa-se o que é decisivo para a fé: a ressurreição do Senhor. E Paulo lhe sinala o fundamento histórico, invocando testemunhas.

O texto:

“Antes de tudo vos ensinei aquilo que eu mesmo recebi: ‘Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Foi visto por Cefas e depois pelos Doze. A seguir foi visto por mais de quinhentos irmãos, de uma só vez, dos quais muitos ainda vivem”.

“Foi visto”, recorda Paulo. A forma verbal usada é “ôphté”, aoristo passivo do verbo grego “horáo” (“horômai”), como se lê nas edições críticas. Significa que foi visto realmente, com os olhos, fisicamente. E foi visto, em primeiro lugar, por Cefas, a “Rocha”. Depois, pelos Onze e por centenas de testemunhas, de uma só vez. Testemunhas que ainda podiam ser inquiridas, pois muitas ainda viviam, quando remeteu a carta. Paulo acentua que a fé na ressurreição se ancorava no fato. Não em fantasia.

Sabe-se quanto em Paulo a Ressurreição era decisiva para a fé e para o anúncio. Lembra aos de Corinto o “Credo” da origem, porque nele está inscrito o dado fundante da fé. E acrescenta sua radicação em uma experiência empírica do Ressuscitado, para lhe assinar o fundamento histórico.

Poderia ter consignado apenas o testemunho do Colegiado Apostólico. Destaca Pedro, porque o Senhor o destacara, revelando-se primeiro a ele. Pedro era a rocha da confirmação e da unidade. A Pedro cabia a credibilidade do primado.

Ainda recorrendo a Paulo, tem-se, na Carta aos Gálatas, comunicação que desvela reconhecimento da posição primacial de Pedro.

“Fui a Jerusalém para ver Pedro e permaneci junto a ele quinze dias” (Gl l,18).

“Historésai Kephan”, diz o texto grego, que a Vulgata traduz por “videre Petrum”, ver Pedro. A tradução se conota de um reconhecimento singular. Da necessidade interior de conhecer, pessoalmente, aquele que o Senhor designara entre os Doze, como traço de união e de confirmação. Assim entendeu Jerônimo. Mas há mais no verbo grego de Paulo. “Historésai” sinaliza mais. É buscar, perguntar, informar-se, contar, descrever, “abrir o coração”. E Paulo, escrevendo ou ditando em grego, conserva o termo aramaico para denominar Pedro. Paulo sublinha que Pedro é Cefas, a “Pedra”, a “Rocha” da promessa.

Passando aos demais escritos do Novo Testamento, o primado petrino se demarca definitivamente como um fato inafastável.

Lucas (22,32) nos narra os últimos avisos do Senhor antes da morte. É um alertamento solene. Os Apóstolos haveriam de ser “joeirados” por Satanás. Mas não menos solene é a esperança, o mandato que como esperança se outorga a Pedro.
O Senhor garante e determina:
“Eu roguei por ti para que a tua fé não falte. Tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos”.
É de notar, desde já, que aí não está somente o fato do primado, mas também o traço fundo de seu conteúdo. “Confirmar os irmãos” será missão de Pedro.

João, de outro passo, atesta a ratificação daquele mandato, após a Ressurreição. Testemunha que o Senhor torna pública a conversão de Pedro e lhe ratifica o primado.
Os termos são induvidosos:
“Simão, filho de Jonas, amas-me mais do que estes? (...) Senhor, Tu sabes que eu Te amo (...) Apascenta meus cordeiros (...) Apascenta minhas ovelhas” (Jo 21,15-17).
A ratificação flui com toda a espessura que o verbo “apascentar” possuía naquele tempo e naquele momento. Espessura, densidade que carregaria consigo pelos séculos.
Pedro, em sua fragilidade, recebe um múnus que só pela força da promessa do Senhor poderia desempenhar. Uma missão que lhe transcende a vida. Na verdade, um dom à Igreja toda e para sempre. Um serviço que é doação até ao sangue.
Atentando bem, vê-se, ainda em João, que, no instante mesmo da apresentação de Pedro ao Senhor, já se lhe preanuncia a missão: “Fixando nele o olhar , o Senhor disse: ‘Tu és Simão, filho de Jonas. Cefas será o teu nome” (Jo l,42).

Igualmente, pelos sinóticos e pelos Atos, apreende-se sem esforço a posição de primeiro entre os iguais conferida a Pedro para servir a todos.

Nos sinóticos é sempre Pedro quem toma a palavra para se dirigir ao Senhor em nome dos Doze. A ponto de Marcos e Lucas identificarem os demais Apóstolos como os “companheiros” de Pedro (Mc 1,36; Lc 6,14-16). Mateus ao elencar os Doze assinala intencionalmente que Simão é o “protos”: “O primeiro é Simão, que se chama Pedro” (Mt 10,2). Como também Marcos e Lucas o fazem (Mc 13,16; Lc 6,14).

Nos Atos, a posição única de Pedro emerge reiteradamente. Desde a eleição de Matias para o lugar de Judas (1,15-26). Neles, identifica-se o Colégio Apostólico como “Pedro e os Onze” ou “Pedro e os outros” (1,13; 2,37). Apresentam Pedro como a voz de todos: “Pedro, de pé com os Onze ergueu a voz” (2,14). Informam que os prodígios mais marcantes, após Pentecostes, aconteceram por intermédio de Pedro (3, 1-6; 9,36). Contam que foi Pedro quem abriu a Igreja aos outros povos (10,1-8; 44,48).

Na realidade, é impossível ler a Escritura do Testamento Novo sem tomar conhecimento do fato da primazia de Pedro.

* * *

O conteúdo do primado.

Evidenciado que o primado de Pedro permeia o conjunto neotestamentário, impõe-se a conseqüência: a perícope clássica de Mateus (16,17-19) não constitui um dado solitário, como alguns pretendiam, para impugná-la como acréscimo.
Assim, sem margem a dúvidas, podemos recorrer ao texto de Mateus, para detectar o conteúdo do primado. O texto desvela, por si mesmo, esse conteúdo.
Tendo ido para as bandas de Cesaréia, o Senhor interroga os Doze sobre quem pensam que Ele seja.

Pedro responde e o Senhor proclama:

“Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelaram, mas o Pai que está nos Céus. E Eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha a Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus. Tudo o que ligares na terra será ligado no Céus. Tudo o que desligares na terra será desligado nos Céus” (Mt 16,17-19).

O caráter da proclamação, em formulação tipicamente aramaica, como ensinam os tratadistas, confere certeza da sua origem. Até mesmo para os que recusam as conseqüências da primazia petrina. Nem Harnack e Bultmann desreconheceram sua radicação na pregação primitiva de Jerusalém.
Pelo que os lingüistas atestam, a estrutura aramaica da perícope é tão espessa que resiste a todas as traduções. Ressoam, ali, sobre Pedro, as próprias palavras pronunciadas pelo Senhor. “Ipsissima verba Domini”. As próprias palavras da “promessa”, cuja eficácia nada pode destruir. Nem mesmo a fragilidade do Apóstolo e dos que viriam a sucedê-lo.

Na realidade, nossa segurança não decorre do reconhecimento dos especialistas ou dos que se dizem “insiders”. A autenticidade da “promessa” e da outorga nós acolhemos por graça. Pela graça da fé batismal. Por isso, não nos impressionam teorias sem raízes, que tentam infirmar o texto de Mateus ou impugnar-lhe algum termo, como o faziam com a palavra “ekklesia”.
Para quem lê a Escritura, na fé da Igreja, a palavra é válida porque válida é a Escritura. E a Escritura é válida porque integra o “cânon” assegurado pela fé da Igreja-testemunha.

Nossa adesão não provém de hipóteses exegéticas. Quem conhece, ainda que pouco, os debates dos exegetas, sabe quão efêmeras são suas teorias quando sustentadas contra a Tradição da Fundação do Senhor. Mais cedo ou mais tarde, os pesquisadores fazem descobertas que implodem teorizações desradicadas “daquilo que foi recebido” na origem. Lembro que, ainda há bem pouco, a descoberta dos papiros 7Q4 e 7Q5 abalou toda a arquitetura exegética que negava a autenticidade das Cartas Pastorais de Paulo e recusava a datação antiga dos Evangelhos Sinóticos. O ensino bimilenar da Igreja foi apoiado pela papirologia, que se debruçou sobre os achados de Qumran. As descobertas de O’Callaghan, católico, padre e cientista, foram confirmadas pelo papirólogo Peter Carsten Thiede, cientista e protestante. Carsten ratificou a descoberta de O’Callaghan, com fundamentação documental e histórica que constituíram verdadeiro míssil lançado contra a exegese dominante.

Retomando a questão do conteúdo, a partir do texto de Mateus, vejamos o simbolismo da “rocha”.

Simão recebe o nome novo de Pedro, Cefas, a “Rocha”, não pelo seu próprio caráter. É galileu e , nele, a generalização de Flávio Josefo sobre os galileus parece confirmar-se. A impetuosidade e a volubilidade não estavam totalmente ausentes no pescador da Galiléia, antes de Pentecostes.
O galileu Simão se torna “rocha” por graça. Não pela carne e pelo sangue. Também não apenas por uma iniciativa pedagógica do Senhor, que se teria configurado na mudança de nome. Ninguém mudaria por mudar simplesmente o nome. Na verdade o novo nome já aponta para o mistério. Para o próprio mistério da Igreja, em cuja base o Senhor coloca o pescador galileu, Simão, filho de Jonas.
Sob o novo nome está o simbolismo da “rocha” (Is 51,1). Como em Abraão, “rocha na qual Israel seria talhado”.
Nesse simbolismo já se contém quase toda a teologia sobre a missão de Pedro, o significado universal e escatológico do primado.

À semelhança com Jeremias (1,18), promete-se a um pobre ser humano a conversão em “uma cidade fortificada”, em “uma coluna de ferro”, em “um muro de bronze”. Em Simão a promessa é ainda mais ampla. Ele terá que enfrentar não apenas forças humanas como Jeremias, mas as forças todas do Abismo. A Jeremias a promessa é limitada ao tempo de sua vida e ao seu ministério específico. Simão é designado para congregar o povo todo de Deus, para ligar e desligar, em dimensão que ultrapassa sua existência no tempo. É a promessa da indestrutibilidade que, na verdade, cabe à própria Fundação do Senhor. Só pela força do próprio Senhor tal múnus poderá ser cumprido.

A “rocha” está destinada a perpetuar a Igreja. A garantir-lhe a unidade na fé apostólica.

A par do simbolismo da “rocha”, completa-se a dimensão do primado com o simbolismo das “chaves”.

É conhecido, na Escritura, o poder-serviço que representam as chaves. Lá , em Isaías (22,20), está: “Chamarei o meu servo Eliacim, filho de Helcias (...) Porei a chave da Casa de Davi sobre seus ombros. Ele abrirá e não haverá quem feche. Fechará e não haverá quem abra”.

Esse simbolismo especifica o simbolismo da rocha.
Cabe a Pedro a missão de guarda e vigia, decidindo quem assumiu as condições para “entrar” e quem se negou a assumi-las.

À responsabilidade das “chaves” se agrega a de “ligar” e “desligar”. Pedro deverá decidir na doutrina e na disciplina. É o Senhor quem lhe impõe esse poder como responsabilidade, como serviço. Não se trata de um poder arbitrário, porque a norma do agir de Pedro estará sob a vontade do próprio Senhor Jesus Cristo, manifestada ao Doze e aclarada em Pentecostes. “Aquilo que foi recebido” será a norma de Pedro. O que o Senhor ensinou, fez e determinou será a regra. Pedro não é dono do que recebeu. É depositário, testemunha, anunciador do Caminho, da Verdade e da Vida. Sinal catalisador da unidade, vigia e pastor, sem prejuízo da missão dos demais Apóstolos, conferida diretamente pelo próprio Senhor, porque também a Pedro se impõe confirmar e defender o mandato apostólico dos demais.

Um poder assim só se pode compreender coordenado com aquele outro testemunhado por João (20,23) e concedido aos Doze, para exercê-lo e transmiti-lo a outros que os sucedessem: o poder de perdoar. A “Ekklesia” é uma assembléia, uma comunidade de homens. Marcados todos pelo pecado.
No fundo de todos esses poderes se evoca a necessidade de perdão. A graça do perdão deve integrar a constituição íntima da Igreja. Toda sua história. A verdade é que o homem só pode ser salvo por graça. O Senhor veio como médico, pois todos somos doentes. Veio com a misericórdia e o perdão. O homem precisa da graça. Da misericórdia e do perdão. É dessa realidade que surge a Igreja como ícone da Trindade Santíssima, que criou por amor e quer salvar a todos por misericórdia. A Igreja nasce da Misericórdia que perdoa. Só o pecado contra o Espírito Santo de Graça e de Misericórdia não pode ser perdoado. E não pode porque é o pecado que rejeita a misericórdia e recusa o perdão.

Esboça-se, assim, o conteúdo do primado petrino. Não glória para um homem, mas serviço à Igreja toda. A todos os homens.

* * *

A questão da sucessão.

A era apostólica é o tempo da Revelação pública, normativa, do Testamento Novo. Com o desaparecimento do último dos Doze, da última testemunha direta do Senhor, aquele tempo se encerra.
Como ficaria a Fundação do Senhor, no tempo pós-apostólico? Como se conservariam a memória e a vida da grande Revelação? Como se cumpriria a grande promessa de que o Abismo não prevaleceria contra ela?
Na Igreja do tempo apostólico, os órgãos garantidores da memória e do anúncio eram os Apóstolos, testemunhas convocadas pelo próprio Senhor.
Conforme o Evangelho, o Senhor comunicara a estrutura de sua missão e de sua existência missionária aos Doze, conferindo-lhes poder, vinculando-os ao seu próprio poder.

Como ensina Ratzinger, em COMPREENDER A IGREJA HOJE (ed. Vozes, 1992), cuja lição sobre o sacerdócio tento assimilar aqui, esta vinculação com o Senhor “é sinônimo da estrutura sacramental”.
Esta vinculação capacita os Apóstolos a fazer aquilo que por si mesmos não poderiam, mas que o Senhor realiza através deles. A nova forma de missão dos Doze, que provém do Senhor, insere-se no âmago da mensagem neotestamentária. Trata-se de um tipo de ministério totalmente novo, o sacerdócio da Nova Aliança. É o ministério no qual o ministro pertence inteiramente a um Outro. Ao Senhor Jesus Cristo. Inserido na comunhão de missão com o Senhor, o ministro comunica o que dele não provém e nisto consiste aquilo que denominamos de sacramento. Tem-se, aí, o centro cristológico do ministério ordenado do Testamento Novo.
Era através dos Apóstolos que a Igreja recebia a Palavra geradora do “homem novo”. Com eles é que toda a pregação e toda a vida das comunidades cristãs emergentes podiam e deviam ser cotejadas. Eram as testemunhas qualificadas pelo ministério ordenado conferido pelo próprio Senhor. As “Colunas”.

Desaparecidas as testemunhas diretas, desapareceriam a Palavra e a Vida que o Senhor trouxera? Extintos os Apóstolos, extinguir-se-iam os órgãos garantes da pureza da fé verdadeira e todas as estruturas de sua propagação? Sem as “Colunas” ruiria a Fundação do Senhor?

Evidente que não. O Senhor viera para todos os povos, de todos os tempos. Erguera sua Fundação, prometendo-lhe indestrutibilidade. Ordenara-lhe que anunciasse o Evangelho até o fim dos tempos, por todos os recantos do mundo. Assegurara sua presença no meio dela para sempre. “Eu estarei convosco, todos os dias, até a consumação dos séculos” (Mc 16,15; Mt 28,19-20).

A conclusão é manifesta.
Os Apóstolos haviam entregado à Igreja “aquilo que tinham recebido” do próprio Senhor. O Depósito da Fé estava nela, não como um arquivo morto, mas como Vida dotada do dinamismo divino. Devia necessariamente continuar a ser comunicada. A evangelização era a missão da Igreja a ser cumprida até os tempos do fim.
A ordem do Senhor era imperativa: “Ide e evangelizai”. “Batizai a todos os povos”. “Fazei isto em memória de Mim”. E assegurada com poder: “Quem vos ouve a Mim ouve”. “Os que vós perdoardes serão perdoados”. “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue terá a vida eterna”. Impunha-se fossem superados os limites de suas vidas. Cumpria-lhes providenciar na sucessão em seu ministério. A “sucessão apostólica” era uma disposição subjacente à determinação do próprio Senhor. Outros deveriam ser ordenados para que a Palavra, o Perdão e o “Pão da Vida” continuassem a ser repartidos. Para que a Verdade e a Vida fossem garantidas. Não poderiam ser deturpadas, asfixiadas e canceladas. Deveriam permanecer dinâmicas até o fim dos tempos.

Esse imperativo, entretanto, não é somente um corolário.
Os Apóstolos haviam recebido um ministério único, conferido pelo próprio Senhor. Esse ministério ancorava-se no centro cristológico da Nova Aliança. Não provinha de mandatos das comunidades. Era uma das pilastras da Fundação do Senhor. Outra seria a “successio apostolorum”, a sucessão apostólica.
A continuidade autorizada para exercer o ministério apostólico se radica em fatos concretos da Escritura e da Tradição toda. A própria Escritura nos aponta como se daria a continuidade.
Quando aconteceu Pentecostes, os Apóstolos compreenderam tudo. Tinham efetivado a sucessão de Judas por Matias. Partiram para o Anúncio. O dom do Espírito Santo de Graça se derramara sobre eles e clarificara todo o projeto do Senhor , para a difusão do Reino até os confins da terra. Para o cumprimento da missão.
Partiram, pregando e constituindo comunidades. Antes de irem adiante, transmitiam, no que cabia, o seu ministério a homens escolhidos, que os representassem e os sucedessem na missão apostólica. Vemos Timóteo sendo exortado por Paulo a reavivar o dom recebido pela “imposição das mãos” (2Tm 1,6).

Os Apóstolos ordenavam ministros que, por sua vez, deveriam ordenar a outros pela mesma forma e para o mesmo fim (2Tm 2,2).

Na Carta a Tito se reitera isso:

“Eu te deixei em Creta para acabares de organizar tudo e, ao mesmo tempo, para que constituas presbíteros em cada cidade, de acordo com as normas que tracei” (Tt 1,5).

Impunha-se a continuidade da evangelização, em cumprimento do mandamento do Senhor. Paulo determina que os constituídos por ele constituam outros. O encadeamento sucessório não deveria interromper-se. Era constitutivo e identificador da Fundação do Senhor.
O testemunho de Paulo sobre o ministério apostólico, ordenado, recebido do próprio Senhor e transmitido pelos Doze e por ele, é múltiplo. É com o poder desse ministério que ele interpela a Igreja de Corinto.
“Somos ministros de Deus”, diz Paulo, invocando a fonte de sua autoridade. Proclama que, por esse ministério, eles são “embaixadores em nome de Cristo” e é Deus mesmo que, por eles, os exorta para se reconciliarem (2Cor 5,20).
A autoridade, o poder-serviço exercido no ministério ordenado não provém de consensos das comunidades. Emana do próprio Senhor. “Somos administradores dos mistérios de Deus”, define Paulo (1Cor 4,1), “ministros da Nova Aliança” (2Cor 3,6). Esse, o ministério que não poderia ser cancelado com o perecimento dos Apóstolos. O ministério de que Paulo fala a Timóteo e a Tito. E, aos presbíteros de Éfeso, chamados a Mileto, quando os anima a serem solícitos por “todo o rebanho”. O rebanho “sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos (‘étheto episcópous’, no texto grego), para apascentardes a Igreja de Deus (poimainein ten Ekklesian tou Teou), a qual Ele adquiriu com seu próprio sangue”, acentua Paulo (At 20,28).

No texto referido, Paulo não distingue presbíteros e bispos. Trata-se, ali, do mesmo e único ministério apostólico. Importa anotar que Paulo não deixa dúvidas. Reitero. Os ministros não sucedem no ministério apostólico por disposição da comunidade, mas por investidura do Espírito Santo. Não se versa, ali, uma delegação de funções comunitárias por parte da comunidade. Versa-se um dom do Senhor Jesus Cristo, pelo qual recebemos aquilo que só Ele pode oferecer. Ministério sacramental, conferido pela unção do próprio Espírito Santo de Graça e de Poder, na “imposição das mãos”.
Perceba-se que, num dos textos mencionados acima, o verbo usado é “apascentar” (‘poimainein’), que remete à própria missão do Bom Pastor. É a estrutura apostólica, remetendo ao centro cristológico. Por sua natureza, o ministério dos presbíteros e bispos constituídos é o mesmo dos Apóstolos.
O princípio da “successio apostolorom” nasce com essa identificação.
Os sucessores não são propriamente Apóstolos, no sentido consolidado e ensinado por Lucas. Apóstolos são propriamente os Doze.
Lucas limita o conceito de Apóstolo aos Doze. Separa o dado irrepetível da origem daquilo que permanece na sucessão. Os sucessores não são apóstolos, no sentido que Lucas apropria aos Doze.
Assim, reiteradamente, percebe-se que, no ministério apostólico, atinente ao aspecto sucessório, há dois dados: um, o fato original, irrepetível (‘ephápax’), exclusivo dos Doze, intransmissível, aquilo que só neles há e só eles são como testemunhas diretas do Senhor, sobre os quais o Senhor fundou sua Igreja; outro, o ministério, “ministerium tradendum”, o poder-missão a perpetuar-se por sucessão, que se transmite, através do ato sacramental da ordenação episcopal.
Estes dois dados constituem um princípio intrínseco à Revelação e à Fundação do Senhor.
A condição de ser Apóstolo, no sentido apropriado aos Doze, por Lucas, é única e base na Fundação do Senhor.
O poder essencialmente cristológico de ensinar, reconciliar, fazer a Eucaristia, apascentar, o “ministerium”, é vital para a continuidade da mesma Fundação no tempo e que, por isso mesmo, deve ser transmitido (“tradendum”). Perpetua-se nos sucessores, que “perseveram na doutrina dos Apóstolos”, fiéis à “Traditio”.

A primeira Carta de Pedro ilustra o fato assinalado da sucessão:
“Aos presbíteros que estão entre vós, exorto eu, seu co-presbítero (simpresbíteros) e testemunha dos sofrimentos de Cristo, participante da glória que há de ser revelada”(1Pd 5,1).

Manifesta-se, aí, ensina Ratzinger, a identificação teológica entre o ministério dos Apóstolos e o dos que por eles são constituídos para “apascentar” e por sua vez constituírem outros no mesmo ministério. Pedro, Apóstolo, se autodenomina “co-presbítero”. Vincula, assim, o sacerdote (presbítero, bispo) ao Senhor, o “Pastor Bonus”, ao qual o Apóstolo está vinculado.

A Tradição espelha a Escritura apontada acima.

Clemente de Roma, testemunha da era apostólica, atesta que “os Apóstolos receberam a Boa-Nova da parte do Senhor Jesus Cristo” e, “munidos de instruções (...), confiados na Palavra de Deus, saíram a evangelizar (...) Proclamando a Palavra no interior e nas cidades, estabeleciam suas primícias como Bispos e Diáconos, dos futuros fiéis (...). Como tivessem perfeito conhecimento do porvir, estabeleceram (bispos) e deram, além disso, instruções no sentido de que após a morte deles, outros homens comprovados lhes sucedessem em seu ministério”. (Carta de Clemente Romano à Igreja de Corinto, tradução direta do grego por Paulo Evaristo Arns, ed. Vozes, 1971.)
Perceba-se. O Testemunho dos sucessores retirava sua força “daquilo que haviam recebido”. Do testemunho dado pelos Doze e por Paulo, que com os Doze conferira tudo.
A palavra e a testemunha se vinculam reciprocamente. Na Igreja primitiva, a palavra ligava a testemunha, mas era a testemunha que lhe assegurava a inequivocidade. Recebera a palavra e era depositária autorizada do sentido inequívoco da palavra.
A concepção luterana de que a sucessão se dá na palavra e não nas estruturas não tem suporte apostólico e histórico. Sem a marca estrutural da origem, a palavra se dissolve no subjetivismo individualista. Domestica-se segundo os gostos da moda. Esvai-se. O conteúdo original acaba por ser cancelado.
Registre-se. A “testemunha sucessora”  testemunha da testemunha direta  não se esgota no indivíduo isolado. Insere-se, no que cabe, na própria comunidade apostólica e na estrutura radicada nos Doze. Relembre-se que até Paulo retornou a Jerusalém com o fim específico de “ver Pedro” e conferir sua palavra com a palavra das “Colunas”, para “não correr em vão”.
A testemunha não o é pela sua própria potência. Como Pedro não é “rocha” pela carne e pelo sangue, pelo seu próprio valor individual. Somente o Senhor comunica o “Pneuma”, o Paráclito que ensina a Verdade e transmite a Vida à Igreja, com “poder”, para servir a todos. É na Igreja que a sucessão acontece. Contra ela é que “as portas” do Abismo não podem prevalecer.
Não tivéssemos a Igreja viva, a Igreja-testemunha, a “imposição das mãos”, como sinal que realiza aquilo que significa, não mais estaria acontecendo. Extinguir-se-ia o encadeamento sucessório.
E a Igreja viva só tem vida pelo Pneuma, o Espírito Santo vivificador, enviado pelo Pai e o Filho, dos quais procede. É Ele quem “fundiu os Apóstolos, sucessores e discípulos, na unidade interior, no ‘Corpo de Cristo’, fazendo nascer a Igreja” (K. Adam). Nas “estruturas sacramentais” da Igreja se encontra sempre a tríplice realidade: “palavra-testemunha-Pneuma”.

Joseph Ratzinger, cujas lições tento seguir aqui, sintetiza assim o que procurei exprimir: “O princípio da Tradição em sua forma sacramental da sucessão apostólica foi elemento constitutivo para a existência e continuidade da Igreja”.

* * *

A sucessão de Pedro, a projeção no tempo e o local.

Com os registros sobre a sucessão em geral, chega-se à última questão aludida ao início: onde se encontra a sucessão a Pedro?

Anoto, primeiro, um fato dentre os que pulsionaram as primeiras gerações da Igreja a marcar as sedes apostólicas, como lugar induvidoso da sucessão legítima. Sedes em que se guardava e vivia a memória pura da palavra testemunhada. Aquelas nas quais subsistia, garantidamente, a Fundação do Senhor. Lá era onde se poderia encontrar a palavra da origem, resistente a todo o arbítrio da especulação e da interpretação individualista.

O fato é conhecido. Já no ocaso do séc. I, a Gnose ameaçava a Igreja, por dentro e por fora. Um modelo intelectualista, contra-institucional, privilegiava a “livre interpretação”, a especulação subjetivista.
No confronto com a Gnose, o apelo a testemunhas individuais já não conseguia aclarar a verdade. Os gnósticos produziam escritos, com grande intensidade. Ora usando os escritos de origem apostólica, interpolando, distorcendo com interpretações inseridas nos textos neotestamentários ou acrescendo-lhes de fantasias; ora criando inteiramente novidades estranhas e atribuindo-as a uma origem apostólica, pela aposição do nome de algum dos Apóstolos. Muitos autores se diziam receptores de revelações secretas, oriundas dos Apóstolos, editando-as sob o nome deles. Os apócrifos se multiplicavam, instalando confusão.
Para discernir os escritos apostólicos autênticos, impunha-se buscar referências concretas e seguras. Os cristãos fiéis, alertados pelos seus pastores, como se vê em Irineu de Lião, entenderam que tais referências só poderiam ser encontradas nas sedes apostólicas. E, entre todas, naquela que as unia em uma só Igreja, a Sé da Unidade na caridade, a Sé de Pedro, Cefas, a “rocha”. Lá onde se depositavam as “chaves”. Somente ela poderia constituir a Sé normativa, que manteria o cânon dos escritos apostólicos verdadeiros. Fora Pedro quem recebera o múnus para “ confirmar os irmãos”.

Os cristãos identificaram imediatamente a Sé normativa, na Igreja de Roma. A que fora fundada por Pedro e por Paulo e onde ambos haviam testemunhado o Senhor com o próprio sangue. Irineu, que transcrevo adiante, nos dá conta disto, nos anos cem.

Eusébio de Cesaréia, nos anos trezentos, escrevendo a história da Igreja, indica três sedes de Pedro: Antioquia, Alexandria e Roma. Demarca, entretanto, que a Sé de Roma era a “principal”. Nela Pedro se estabelecera e nela derramara o sangue pela fé. Por isso tem o cuidado de registrar a sucessão na Sé de Roma, listando os nomes a partir de Pedro. Aos sucessores de Pedro é que se comunicava a primazia petrina.

Tinha razão o historiador Eusébio.

Já no ocaso do séc. I, vemos a comunidade de Corinto, apelando à Igreja de Roma, para resolver seus desencontros e divisões. Poderia ter postulado à Igreja de Éfeso, mais próxima, onde João ainda vivia ou há bem pouco morrera. Não obstante, recorre a Clemente, terceiro sucessor de Pedro, na Sé de Roma. Com caridade e firmeza, Clemente responde. Sua Carta aos Coríntios demonstra a consciência do múnus que desempenha. Instrui, proclama o princípio da autoridade-serviço ínsito à sucessão apostólica. Exorta, exige obediência aos princípios decorrentes “daquilo que foi recebido”. Com humildade de servidor dos irmãos, mas firme na doutrina recebida na origem, impõe e lavra decisão. Se os responsáveis pelas divisões não acolherem sua palavra, incidirão em pecado. Decreta como pecaminosa a divisão. (Carta referida, n. 50, p.60.)

Na primeira década do séc. II, Inácio, bispo de Antioquia, contemporâneo dos Apóstolos, discípulo de João, é condenado às feras pelo Império. Levado a Roma, para execução, escreve à Igreja sediada lá. Sua carta chegou até nós. Na introdução, Inácio, guia e orientador das comunidades orientais, expressa uma veneração especial à Igreja sediada no território romano, pela pureza de sua fé, e a proclama como a Igreja que preside a todas as demais, na caridade. Quer testemunhar a fé no Senhor com o próprio sangue e pede não tente a Igreja livrá-lo do martírio. Roga que apenas rezem, esclarecendo que isso não tinha a pretensão de uma ordem: “Não dou ordens como Pedro e Paulo. Apenas suplico”.

Testemunho histórico de uma força ímpar é, sobretudo, o de Irineu, emigrado do Oriente para Gália e bispo da Igreja de Lion, na segunda metade do séc. II. Fora discípulo de Policarpo, herói da fé, martirizado pelo fogo, bispo de Esmirna, que o próprio Apóstolo João ordenara e com outros Apóstolos convivera. Irineu fala com a autoridade de quem tinha nos ouvidos “o eco da palavra dos Doze”, através de Policarpo. Deixou-nos uma obra que o distingue como um dos maiores teólogos da Igreja dos primeiros séculos. Em “Adversus Haereses”, do ano 180, legou-nos lição histórica sobre a matéria destas anotações.

Vale citá-lo:

“A tradição dos Apóstolos, que foi manifestada no mundo inteiro, pode ser descoberta em toda Igreja, por todos os que queiram ver a verdade. Poderíamos enumerar aqui os bispos que foram estabelecidos nas Igrejas pelos Apóstolos e os seus sucessores até nós (...). Como seria longo demais enumerar as sucessões em todas as Igrejas, limitar-nos-emos à Igreja maior. À mais conhecida e mais antiga de todas (como referência para as demais). À Igreja constituída pelos dois gloriosos Apóstolos Pedro e Paulo, em Roma. Àquela que tem a tradição dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens e que chegou até nós pela sucessão dos bispos. Assim confundiremos todos quantos (...) se juntam indevidamente (sem legitimidade) em outras partes.
É com esta Igreja, por causa de sua mais autorizada primazia (“propter potentiorem principalitatem”), que deve harmonizar-se toda a Igreja, os fiéis de todos os lugares. Ela é aquela na qual sempre foi conservada a Tradição vinda dos Apóstolos. Tendo assim fundado e edificado a Igreja de Roma, sua administração episcopal foi transmitida a Lino (primeiro sucessor de Pedro). Aquele Lino mencionado por Paulo na Carta a Timóteo. Lino teve como sucessor Anacleto. Depois dele, em terceiro lugar, Clemente, que conviveu com os próprios Apóstolos e lhes falou. Ele tinha a pregação dos Apóstolos nos ouvidos e a Tradição ante os olhos. (...) Sob Clemente, por ocasião de uma discussão bastante viva na Igreja de Corinto, foram escritas cartas importantes pela Igreja de Roma à Igreja de Corinto, a fim de reconduzi-los à paz, restaurar a fé e reiterar a Tradição recentemente recebida dos Apóstolos (...)” (Adversus Haereses, III; 3,1-2).

Os fatos e testemunhos apontados, dos sécs. I e II, já demarcam qual a sé apostólica normativa reconhecida pelas Igrejas Particulares então constituídas no Oriente e no Ocidente. Reconhecimento que decorre, exclusivamente, da historicidade da sucessão petrina em Roma.

Arrolo mais alguns dados.

Lembro Pápias, bispo de Hierápolis, no trânsito do séc. I para o séc. II (70-140),contemporâneo de Inácio de Antioquia e de Policarpo de Esmirna. Seus escritos das duas primeiras décadas dos ano cem, nos dão conta da sucessão de Pedro em Roma. Atestam que Marcos acompanhava Pedro e escrevia “fielmente, embora não em ordem”, tudo quanto Pedro pregava. Eusébio de Cesaréia, tanto na “História Eclesiástica” quanto nas “Crônicas” conservou fragmentos dos textos de Pápias.
Hegesipo, escritor eclesiástico do séc. II, quando Aniceto era o décimo sucessor na cátedra de Pedro (154-166), visita diversas Igrejas para certificar-se da doutrina diretamente transmitida pelos Apóstolos aos bispos seus sucessores. Em Roma verifica ter havido até Aniceto sucessão legítima sem interrupção. Isto era importante para ele, porque lá estava a Sé de Pedro.
Policarpo, já mencionado, pela mesma época também se dirige a Roma, para obter a concordância de Aniceto, referente à data da celebração da Páscoa nas Igrejas do Oriente. Aniceto o acolhe e se despedem em paz e comunhão. Pouco tempo depois (155), Policarpo, já idoso, enfrenta o martírio e testemunha a fé.
O caso de Vítor, décimo terceiro sucessor de Pedro (189-198), é veemente para comprovar a sucessão petrina em Roma. Reacendera-se a questão da data da comemoração pascal. Vítor ameaça desligar algumas Igrejas do Oriente da Sé Romana, sinal de unidade da Igreja Universal. Irineu parte de Lião, para ponderar a Vítor que se tratava de tradições litúrgicas e não de doutrina da fé. Reconhece-lhe autoridade para “ligar” e “desligar”, canonicamente, mas argumenta que essa autoridade só deveria ser exercida para defender a Tradição Apostólica, em matéria de fé e de moral.

Como estes registros não têm pretensão de tratado, concluo com a intervenção de Leão Magno, quadragésimo quarto no rol dos sucessores de Pedro (440-461), no Concílio de Calcedônia (451). Debatia-se a questão da “natureza” do Senhor, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Leão não pode deixar Roma. Envia delegados e carta (“Epistola Dogmatica ad Flavianum”), na qual expunha a doutrina das “duas naturezas”, humana e divina, sem confusão e sem mistura, na única Pessoa do Verbo, como a verdadeira interpretação “daquilo que fora recebido”. Documento que também ficou conhecido como “Tomus Leonis”.

A reação dos Padres Conciliares demonstra como a certeza da sucessão de Pedro em Roma era induvidosa. Examinada a doutrina exposta na carta, aclamaram-na , exclamando: “Pedro falou pela boca de Leão!”.

Detenho-me, aqui. Deixei de anotar as fontes das últimas anotações por se encontrarem em qualquer História da Igreja de alguma significação. Listo apenas mais uns poucos escritores cristãos, entre os quais alguns dos “Santos Padres”, dos sécs. III, IV e V. Todos testemunhas da sucessão em Roma.

Além dos já referidos, dos sécs. I e II, lembro pela ordem dos séculos, Clemente de Alexandria, Hipólito, Cipriano, Orígenes (séc. III). Atanásio, Hilário de Poitiers, Ambrósio (séc. IV). Jerônimo e Agostinho (séc. V). É de Agostinho a expressão “Roma locuta, causa finita”.

* * *

O primado evidencia-se da Escritura e se inscreve na história. Sua projeção no tempo, sua continuidade, deu-se na Sé de Roma, a sé da “potentior principalitas”, na formulação de Irineu. Normativa, “centrum unitatis”, cujo órgão é o bispo que sucede a Pedro.

Pedro a fundou, nela se estabeleceu e testemunhou a fé pelo martírio, fixando o lugar da sucessão.

Também em Roma foi sepultado e lá se encontram seus restos mortais, conforme comprovou o trabalho de mais de vinte anos da epigrafista Catherina Guarducci e dos cientistas que integraram a pesquisa. A identificação histórica foi anunciada por Paulo VI, em 1968. Superadas as vacilações da equipe que fizera as escavações de 1940 a 1949. O grafite “PETR ENI”, em caracteres gregos, analisado por Guarducci, abriu o caminho para a identificação. A tradição foi confirmada.

A primazia normativa da Sé Romana vem do Apóstolo e se comunica, no que cabe, aos bispos que nela o sucedem. De Lino a João Paulo II, duzentos e sessenta e quatro sucessores legítimos. Esse é o dado histórico. O primado romano não ancora em lendas nem é conseqüência do arbítrio. O testemunho da Igreja-testemunha conforta-se no fato e bendiz o Senhor porque Ele é fiel e cumpre a “promessa”.

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O propósito destes registros parece atingido.
Agrego, entretanto, mais algumas anotações com eles relacionadas. Faço, depois, incursão por outro território que a geografia dos doutos silencia. Arrisco, porque ali se conforta “aquilo que foi recebido”. “Aquilo” é vivo, pela presença atuante do Senhor. Cumpre-se a “promessa”.

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Anotações agregadas.

Ao agregar estas últimas anotações, reitero: O Bispo de Roma, a quem chamamos “Papa”, é sucessor de Pedro porque bispo da Sé de Pedro. É daí que lhe vem o múnus petrino.

Pela “imposição das mãos” e da oração consecratória, na ordenação episcopal, se dá a inserção dos ordenados no Colégio Episcopal da Igreja, que sucede ao Colégio Apostólico. É a “successio apostolica”. Pela designação e investidura na Sé de Pedro, o bispo se insere especificamente na “successio Petri”. Na condição de “Successor Petri”. Não naquilo que é exclusivo do Apóstolo e que se deu uma e única vez por todas (“ephápax”), mas, na diaconia de Pedro. Na missão de apascentar. No poder-dever de vigia, guarda, sentinela da “memória”. No múnus de órgão da Igreja, garante da Tradição Apostólica. Sinal da unidade, da comunhão, na verdade e na caridade. Para exercer esse múnus, recebe ele a “potestas” e a “jurisdictio”. Em última instância ele deve dizer a fé da Igreja do Senhor. Ele deve confessar a fé recebida dos Doze e nela confirmar os irmãos.

O seu limite? Esse mesmo é seu limite. Ele é guarda e não dono da Verdade recebida. Cumpre-lhe guardar e perseverar na “doutrina dos Apóstolos”. Não pode inventar nem manipular. Não pode cancelar nada que diga com o fundamental do “Depositum fidei”. Em exemplo, nada que diga com a substância dos Sacramentos ele pode alterar. Essa é a lição da origem, que Pio XII proclamou veementemente e que João Paulo II reiterou, em 1994, na Carta Apostólica “Ordinatio sacerdotalis”.

O múnus petrino é um dom do Senhor à Igreja toda. Pedro atuava esse dom em comunhão com o Colégio dos Doze. Cumpre ao sucessor de Pedro atuá-lo na comunhão com o Colégio dos Bispos.

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Referi que a inserção no Colégio Episcopal se dá pela “imposição das mãos”. Acentuo que não se trata, aí, apenas de um sinal jurídico-formal. Trata-se do Santo Sacramento da Ordem. O sinais dos sacramentos realizam aquilo que significam. Têm uma densidade transcendente. Há neles o dinamismo divino da Graça. E, no caso, marcam o ordenado com marca indelével.

A designação de um bispo para a Sé de Pedro tem outra vertente. É ato jurídico da Igreja, regulado canonicamente. Um colégio eleitoral, canônico, elege o sucessor de Pedro. Esse ato é vinculativo para o eleito, que aceita a escolha, e para a Igreja toda, mas não acrescenta nenhum “poder de ordem”. O eleito não se torna um “superbispo”. Continua bispo como os demais. O que se lhe acrescenta é a investidura no “Primado”, no “múnus Petri”. Impõe-se ao investido o “poder-dever” de “signum unitatis”, na fé apostólica e na caridade. De sentinela da “memória” da Igreja, na comunhão com todos os bispos do passado e do presente que “perseveraram e perseveram na doutrina dos Apóstolos”. “Poder-dever” que implica uma “jurisdictio”, que é serviço. Mas isso somente enquanto se mantém à testa da Sé Apostólica de Roma. Pode renunciar. Se renuncia, cancela-se nele a condição de “primus inter pares”, para servir a todos. Outro o sucederá.

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A desproporção entre o humano do homem e o divino de Deus, tanto no sacramento da ordenação episcopal quanto na investidura como sucessor de Pedro, configura uma tensão tão grande que indicia, por si mesma, não ser invenção do homem. Não poderia jamais manter-se sem a permanente presença atuante do Senhor.
É a continuação daquela tensão que já se manifestou na criação da Igreja sobre doze homens simples e frágeis, com a missão de suscitar o Reino no mundo inteiro. Mais ainda, na transformação de uma pequena “pedra de tropeço” em “rocha” indestrutível.

A “promessa” do Senhor que funda nossa segurança, humanamente impensável, não nos contamina de triunfalismo. Impele-nos à gratidão e à confiança humilde. Pedro não é um príncipe ou um rei, um todopoderoso ao desenho do mundo e de suas categorias. Pedro é um servidor. O primeiro, por ser o último. Não se pode imaginar Pedro como uma tríplice coroa. Paulo VI viu isso e livrou a Igreja daquela contaminação cultural, que talvez em algum tempo tenha sido exigido como símbolo epocal.

O zelo ecumênico conduz, hoje, alguns teólogos a matizar o primado e a consistência da “rocha”. É um equívoco letal. Não se pode transacionar à custa da verdade. O reducionismo não é humildade. Qualquer hipótese de redução na substância “daquilo que foi recebido” agride a integridade e a gratidão. Desfigura o mistério da Graça, da Misericórdia e do Perdão, que jorra dos poços eternos da Trindade, através do Coração aberto do Ressuscitado.

Também não se justifica o encurtamento da verdade por temor da prepotência e do escândalo. A Igreja pode já ter sofrido com isso. Mas nem nos momentos sob esse aspecto mais tristes o Senhor abandonou sua Igreja. O “Depositum Fidei” permaneceu intocável. A promessa do Senhor se cumpriu. E mesmo não há mais falar em prepotência de Roma, depois do exemplo de Paulo VI, em 1975. Ao receber o Metropolita Melitão, representante do Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, na comemoração dos dez anos do levantamento das excomunhões mútuas de 1054, o Papa beijou-lhe os pés. O gesto do Sucessor de Pedro sacudiu o mundo. O Patriarca Demétrio I, ao tomar conhecimento, exclamou: “Paulo VI se igualou aos Pais da Igreja!”

* * *

Os desertos e os charcos pelos quais transitou a Igreja, na história, nós registramos. Com dor, mas com realismo. A infecção de seus quadros pelo mundo, em diversos períodos da história, causaram lesões e rupturas que só a intervenção direta do Senhor pode sanar. Mas também isto só nos confirma que é o Senhor quem sustenta a Igreja. Ela é do Senhor e não nossa, na onticidade última. Essa, a nossa segurança. É na “promessa” que nós cremos e cofiamos.

Só o poder da Graça impede que as potências do Abismo prevaleçam. Dois mil anos de presença viva é fato impossível, na história do tempo, sem a atuação do Paráclito que o Senhor continuamente envia. Inclusive impedindo a errabilidade humana, quando a Igreja proclama “urbi et orbi”, “ex cathedra Petri”, “aquilo que foi recebido” como fundamental na fé apostólica. Aí se acumula o ponto mais elevado da tensão referida há pouco. Vivemos essa tensão, na fé batismal. Sabemos que é o Senhor quem garante. Não a sabedoria nem valor dos homem. Nisso nós cremos. Por graça.

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A incursão censurada pelos doutos.


Agregadas as anotações supra, arrisco a incursão que anunciei. Adentro o território que a geografia dos doutos silencia: o território das revelações particulares que tenho por autênticas(1), segundo os critérios de discernimento. Não vinculam elas a consciência do católico, enquanto católico, a qual só a Revelação pública, normativa como tal, vincula . Daí por que os eruditos sobre elas silenciam , quando não as desprezam frontalmente para não “comprometer” seus diplomas.

Para mim, entretanto, o fato está aí. Temos o fato. Há dois mil anos que o temos. O Senhor sempre interveio extraordinariamente junto a seu Povo e continua intervindo. Sobretudo, nos momentos duros para sua Fundação, nas dobras críticas da história. Por sobre os socorros permanentes de que dotou a Igreja, Ele a socorre por formas extraordinárias, imprevisíveis, desconcertantes para os homens de ciência. Ele é o Senhor-que-prometeu-e-cumpre. O Senhor que cumpre todas as promessas, a despeito de nós mesmos.

A incursão é curta e rápida. A história das revelações privadas autênticas(1) é vasta e permeia toda a história da Igreja, mas me cinjo aqui a uns poucos fatos mais recentes.

Lembro. Quando Pio IX, em 1854, proclamou a verdade da Concepção Imaculada da Mãe Bendita do Senhor, em vista dos méritos do Filho, mais se adensaram as rupturas existentes. Então, pouco tempo após, o Senhor interveio para ratificar a proclamação do Sucessor de Pedro. A própria Mãe Bendita, em missão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, veio ao nosso encontro, em Lourdes, e declarou simplesmente, sem rodeios: “Eu sou a Imaculada Conceição”.

Repito. Sei que a “prudente normalidade” dos doutos censura a invocação de tais fatos. Perante eles isso causa “desprestígio”. Não importa.
Arrisco mais.
Lembro Fátima. Aponto Medjugorje. Em ambos os locais a Mãe Santíssima desvela carinho e cuidado especial para com a Sé de Pedro.

Concluindo, lembro o zelo com que a Mãe Santíssima se manifesta no Movimento Sacerdotal Mariano, desde 1973 até hoje, a respeito de Paulo VI, João Paulo I e de João Paulo II. E lembro, por sua singularidade, outra palavra que nos é dada hoje, por um profeta que vem da “Ortodoxia”, convocando todos a reconhecerem e a seguirem Pedro, em João Paulo II.

Do seio da Igreja Ortodoxa o Senhor suscitou Vassula Ryden(2), grega de origem. Vassula reitera aquilo que nos foi testemunhado por Mateus, na perícope clássica sobre Pedro.

O próprio Senhor, Deus vivo e atuante, irriga nosso deserto, dirigindo-se a todos os cristãos(3), interpelando-nos e exortando-nos, através de seu profeta.

Interpela-nos, confirmando a perícope de Mateus:

“Não pedi Eu mesmo a Pedro que apascentasse as minhas ovelhas? Não o escolhi Eu mesmo para apascentar meus cordeiros? Não pronunciei Eu mesmo as palavras: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’?” (A Verdadeira Vida em Deus, vol. II, p. 38, Caderno 18, Vassula Ryden, ed. port.).

Exorta-nos, ratificando a sucessão de Pedro em Roma:

“Fui eu, o Senhor, que escolhi Pedro, Pedro que hoje é João Paulo II. Regressai todos a Pedro, porque fui Eu, vosso Deus, que o escolhi. Fui Eu quem lhe deu uma língua de discípulo e, por Mim, ele é capaz de ser fiel até o extremo”. (...) Permanecei em comunhão com ele, custe o que custar” (op. cit., vol. VI, p. 57, mensagem de 17.3.1993).

A interpelação e a exortação são claras. Sem reducionismo. Sem sombra de “pancristianismo”.

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“Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. A Escritura e a Tradição se confirmam hoje. Nos territórios da história, da profecia e do milagre.

2 comentários:

Eno pai e suas reflexões e pistas disse...

Tu és Pedro. - Aplaudo. João Vaal

Eno pai e suas reflexões e pistas disse...

Papiro 7Q5
Lamento por ter tomado conhecimento da matéria somente agora.
Os cristãos não poderiam ignorar a matéria exposta. E exposta com convicção e clareza.
Maurício Bingger