quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Ecumenismo

Revista Cultura e Fé, n° 111 - 2005
Eno Dias de Castro - edcrs@uol.com.br


ECUMENISMO – ANOTAÇÕES


Consciência do dever de restaurar a unidade entre os cristãos, o ecumenismo não é um apêndice juntado à vida da Igreja. É um imperativo da sua própria ontologia.
João nos conta, em Jo 17,21, que o Senhor queria fôssemos todos um à semelhança da Unidade Trinitária. E, por Atos 4,32, sabemos como a Igreja logo no começo constituía um só coração e uma só alma.
Entretanto, o pecado da divisão aconteceu e foi multiplicado.
A multiplicação da divisão fez João Paulo II interrogar o mundo cristão, exclamando na Ut unum sint, 6: “Como é possível permanecermos divididos, se, pelo batismo, fomos imersos na morte do Senhor?”
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Parece, em um primeiro lance, que a questão da unidade na diversidade tem relação com a questão do uno e do múltiplo, posta em tempos recuados e formulada com insistência pelos filósofos gregos. Parece, porque a unidade é uma questão que emerge do fundo do ser humano. Algo assim como uma lembrança primordial, não explicitada. Uma saudade de plenitude por participação, que dorme no coração do ser marcado de finitude.
Evitando esse caminho da especulação filosófica, tento manter estas anotações no roteiro da fé. A Fundação do Senhor, a Igreja do Senhor, que aponta para a nova unidade dos homens, varões e mulheres, deve testemunhar a unidade nela mesma, sob pena de escândalo. Nenhum cristão pode permanecer indiferente ante as divisões.
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O coração dos que aderiram ao Senhor Jesus Cristo para valer anseia pelo retorno à comunhão plena entre todos os batizados, pela restauração da unidade na verdade e no bem-querer, respeitadas as diferenças legítimas.
Esse anseio deve tornar-se busca concreta. Busca da comunhão plena, na fé recebida dos Apóstolos. Deve. A busca se torna imperativa a partir daquilo de Jo 17, 21. E, para quantos fazem a experiência da alegria da pertença à Fundação do Senhor, à medida em que se informam e rezam, além de mandamento, o anseio pela unidade se torna uma paixão.
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Apaixonado pela união, pela participação em um só Cálice ao redor de um só Altar, o cristão em comunhão com Pedro se pergunta: quando chegará o dia? quando celebraremos a Páscoa todos juntos? quando voltará o tempo do começo? quando?
Há como que uma saudade daqueles dias em que todos eram um só coração e uma só alma. É como se a alma do cristão que experimenta esse fascínio tivesse a juventude da fé de dois mil anos atrás. O fascínio da saudade gera uma atmosfera real, tão real que, ao experimentá-la, o cristão se sente contemporânea daqueles que viveram Pentecostes.
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Será possível algum prognóstico sobre quando chegará o dia? Penso que não. Ainda não. Ao tratarmos da separação e da unidade, estamos diante do mistério do pecado e da graça. Isso é consabido, para os cristãos medianamente informados. A comunhão interior e formalmente completa entre os cristãos, depende de uma intervenção decisiva do Espírito Santo Paráclito, do Ruah da Verdade e do Amor, Sopro que purifica, unifica, unge e rejuvenesce a Igreja. É somente Ele quem poderá sanar as chagas das nossas rupturas e fazer com que se reconstitua o tecido da unidade. A condição, para essa intervenção, é a nossa conversão.
Precisamos todos postular a graça que nos pulsione a uma conversão verdadeira. Conversão de todos nós batizados. Penso na conversão que se impõe como consciência e tarefa. Conversão que deve implicar todas as comunidades de fé. Toda a Igreja. Ocidental e oriental.
Pressuposto e ao mesmo tempo sinal do processo de conversão é o diálogo intelectualmente honesto, para a busca da verdade, na humildade, no respeito recíproco e no mútuo querer bem.

O fundamental destas afirmações não é meu. Não constitui novidade alguma. Leão XIII, Bento XV, João XXIII, Paulo VI, gigante na busca da unidade, João Paulo II, heróico no abrir caminhos concretos rumo à unidade, o grande Atenágoras, abençoado Patriarca da Igreja Ortodoxa de Constantinopla e seus dignos sucessores, todos proclamaram a necessidade da intervenção do Espírito Santo para que o retorno à unidade aconteça..
Hoje, Bento XVI, que, para mim, foi o teólogo da unidade, está iluminando, aplainando e aquecendo os caminhos abertos por seus antecessores.

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Não se pode fazer prognósticos sobre a restauração da unidade perdida. Entendo, entretanto, que nunca será demasia insistir, por todas as formas ao nosso alcance, para que não se apague em nossa consciência o mandamento da unidade. Não podemos deixar se extinga a chama da saudade dos tempos em que todos eram um. A unidade foi objeto de oração especial do Senhor.

Tentando manter a chama, prossigo com apontamentos sobre as rupturas ocorridas e sobre o modelo da unidade que penso deva ser buscada, cingindo-me às relações com nossos irmãos ortodoxos.
Faço apenas anotações. Descartei a idéia de tratar o tema do modo didático. Todo o católico informado tem noção bastante sobre o ecumenismo. Não o confunde com diálogo inter-religioso nem com pancristianismo.
Prossigo voltado para a separação ocorrida no Oriente (sécs. V e XI). No Ocidente as rupturas são quase inumeráveis. As comunidades que inicialmente se separaram em nome de Lutero (séc. XVI), por exemplo, de rupturas em rupturas entre si mesmas, já constituem milhares hoje. Por isso mesmo, é praticamente impossível distingui-las para agrupá-las segundo notas básicas, a fim de compreendê-las e situá-las perante o modelo de unidade a buscar.

Como se percebe, estou distinguindo as rupturas em dois grandes grupos, apenas pelo critério meramente geográfico. Rupturas do Oriente e rupturas do Ocidente. Faço isso para não complicar um simples trabalho constituído de anotações. No Oriente, vejo duas principais. No Ocidente, múltiplas. Nestas anotações, já sinalei, restrinjo-me às rupturas no Oriente. E, particularmente, à ocorrida no séc. XI.

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No Oriente, com repercussão, abrangência e continuidade, houve duas rupturas principais. Deu-se a primeira em 451. Foi a das Igrejas não-calcedonianas. A segunda, impropriamente marcada como ocorrida em 1054, foi a da Igreja Ortodoxa.
A ruptura de 451, que deu origem às Igrejas não-calcedonianas, ocorreu quando o desenho conceitual do mistério do Senhor Jesus Cristo já estava avançado. Já havia acontecido o Concílio de Nicéia (325). A formulação da fé na consubstancialidade do Pai e do Filho e também na humanidade assumida pelo Filho fora delineada. A Igreja una professava a fé de Nicéia, como fé das origens. Esta profissão de fé, esta unidade, desvela um pressuposto, o pressuposto de que havia unidade na estrutura da Igreja na qual se fundara aquele concílio.

Perceba-se que, em Nicéia, se tratava de guardar a fé da origem, a fé recebida dos Doze. Não estava em questão apenas a unidade relativa a uma expressão, a uma fórmula, a um modo de dizer determinada verdade de fé. As definições ali formuladas tinham como pressuposto a consciência da unidade no modo pelo qual a partir de Jesus, da Palavra de Jesus e dos Apóstolos, a Igreja se formara e se constituíra. No modo pelo qual o Cristianismo se configurara na história. Manifestava-se, então, a consciência de que a Igreja lá reunida era a Fundação do Senhor, contra a qual as portas do inferno nunca prevalecerão (Mt 16, 18).

É de ver que a fé comum, professada em Nicéia, revela que se tinha como verdadeira, em suas raízes e em seu caule, a Igreja reunida ali e naquela época. Para os Padres Conciliares todos, a Igreja, descrita na Escritura e na história, era a depositária da Palavra tal como se havia desenvolvido até o séc. IV. Significa que se tinha por intocável tanto a Escritura quanto a Igreja nela confirmada, relativamente à sua forma básica.

Nesse patamar de compreensão está incluído um fato decisivo: o fato de que os bispos, por força de sua ordenação sacramental e da Tradictio recebida por essa ordenação, encarnam a identificação com a origem, configuram a unidade com a origem, vivem a unidade da origem.
Está aí aquele fator essencial, proclamado, já no séc. II, como parte da estrutura eclesial, como elemento sustentador, a “successio apostolorum”.

Testemunha disso é Irineu, o teólogo maior do séc. II, divulgador da compreensão da apostolicidade da Igreja una. Falo de Irineu, bispo de Lyon, aquele que tinha nos ouvidos o eco da palavra do Apóstolo João, através de Policarpo, bispo de Esmirna, mártir.

Irineu proclamava, por volta do ano 180, que a Igreja verdadeira era “aquela que tinha a tradição dos Apóstolos e a fé anunciada aos homens e que chegou até nós pela sucessão dos bispos” (Adversus Haereses, III; 3, 1-2). Aqui, lembro Ratzinger, em “Teoria de los Principios Teológicos”: “O conteúdo da tradição se transmite pela sucessão e a sucessão se dá pela ordenação. A ordenação é a forma sacramental da sucessão e o conteúdo da sucessão é a tradição”. O fato-suporte da estrutura eclesial, o fato identificador da Igreja, reconhecido pelos Santos Padres, desde a era apostólica, é a “successio apostolica”.
Isto não é testemunhado apenas por Irineu de Lyon. Clemente de Roma, e terceiro sucessor de Pedro, ordenado pelo próprio Pedro segundo Tertuliano, já proclamava, por volta do ano 96, o princípio da sucessão apostólica como fato sustentador da continuidade da Igreja no tempo (Carta à Igreja de Corinto).

Essa unidade estrutural da Igreja se manifestou até o Concílio de Nicéia. A Igreja-instituição, enquanto tal, era o lugar da Palavra na história, para todas as tendências representadas naquele concílio. O colegiado dos bispos validamente ordenados era a garantia e o sinal existencial da Igreja do Senhor.

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Sob o aspecto do princípio da sucessão apostólica como fato-suporte da estrutura eclesial, não há diferença entre as Igrejas do Oriente, que se separaram. As Igrejas lá separadas mantiveram o fato que as une à origem. As Igrejas não-calcedonianas, conhecidas como monofisitas, mantiveram a unidade sacramental, com bispos verdadeiros, tal como ocorreu com as Igrejas ortodoxas.

Distingue-se, entretanto, a ruptura de 451 da ruptura que costumam situar em 1054. A primeira, explicitada por ocasião do Concílio de Calcedônia, se fundou na formulação conceitual da fé sobre a natureza do Senhor Jesus Cristo. A segunda não se fundou em formulações conceituais da fé. Centrou-se, primeiramente, na questão da jurisdição do Bispo de Roma sobre a Igreja toda. Em um segundo momento a ruptura se aprofundou com a invocação de outras questões. Desde o “Filioque” até a interpretação de Mt 5,32.

Marque-se bem. Sublinhe-se. Nenhuma das duas separações significou oposição quanto à compreensão estrutural básica da Igreja como lugar da Palavra, na história, desde a origem e para sempre. Para o Oriente e para o Ocidente continuava o fato de que, ali, onde havia um bispo em comunhão com os demais, estavam os dons sacramentais da Igreja da origem. Completamente diferente daquilo que ocorreu no Ocidente, nas rupturas do séc. XVI.

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Atenho-me, no prosseguimento, ao Oriente e, nesse, à segunda ruptura, como anunciei antes. Àquela ruptura que se diz consubstanciada por Miguel Celulário, em 1054, em contrapartida à postura do Cardeal Humberto, emissário da Sé de Roma. A questão em foco foi a da recusa à intervenção da Igreja de Roma. À jurisdição do Sucessor de Pedro.

Quanto à jurisdição do bispo de Roma, que identificaram como “monarchia papae”, segundo o conceito que, equivocadamente, dela fizeram determinados segmentos, foi caracterizada como destruição da forma estrutural da Igreja dos tempos apostólicos. Um novo modo de ser teria substituído, na Igreja do Ocidente, a forma paleoeclesial.
Para o Oriente separado, a organização eclesial do Ocidente, concebida mais tarde como “societas perfecta”, centralizada juridicamente, monolíticamente codicizada, teria destruído a realidade original da comunhão de Igrejas locais, guiadas por seus bispos, cuja unidade colegial apontava para a comunidade dos Doze. A estrutura sacramental da Igreja teria sido sufocada, no Ocidente, por uma estrutura jurídica, sintetizada na formulação do primado de jurisdição do Bispo de Roma, que teria assumido a condição de monarca absoluto, a partir do Vaticano I (1870). Esse entendimento que se estabeleceu em espesso segmento do Oriente deve ser debitado, em parte significativa, à corrente maximalista católica do séc. XIX.

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Entretanto, se o Oriente separado se detiver no exame do que definiu o Concílio Vaticano I e aprofundar cada vez mais o diálogo, verá que os maximalistas ignoraram o capítulo IV da constituição dogmática Pastor Aeternus, editada pelo Concílio Vaticano I. Como ignoraram também o que ensinou Pio IX, na carta apostólica “Mirabillis illa constantia”, de março de 1875.
Observe-se a titulação do capítulo IV da Pastor Aeternus, que trata da infalibilidade. Lá está: “Do magistério infalível do bispo de Roma”.
Note-se que foi rejeitada pelos Padres Conciliares o título “Da infalibilidade do Bispo de Roma”, proposto para aquele capítulo. Por quê? Pelo simples fato de que o Concílio não reconhecia a infalibilidade de um homem particular, mas do magistério extraordinário da Igreja proferido, “ex cathedra Petri, urbi et orbi”, pelo Sucessor de Pedro. Isso se evidencia, quando, no mesmo documento, se proclama: “ (...) aos sucessores de Pedro não foi prometido o Espírito Santo para que, por revelação sua, manifestassem uma nova doutrina, mas que, com sua assistência, custodiassem santamente e fielmente expusessem a revelação ou o depósito da fé transmitido pelos Apóstolos”.
Houve, na mesma direção, oportuna manifestação do episcopado alemão contra circular secreta de Bismarck, descoberta em 1874, a respeito da jurisdição do Bispo de Roma.

Os bispos alemães foram claros. A instituição divina é o fundamento sobre o qual assenta tanto o ministério petrino do bispo de Roma, quanto o ministério apostólico dos demais bispos. Os bispos não são instrumentos do Papa nem funcionários sem responsabilidade própria. Foram instituídos pelo Espírito Santo e postos no lugar dos apóstolos, como autênticos pastores a serviço das comunidades de fé a eles confiado.

Pio IX defendeu publicamente o ensinamento do episcopado alemão. Na carta apostólica referida acima, declarou que o comunicado coletivo dos bispos alemães oferecia a pura doutrina católica e, conseqüentemente, do Concílio e da Sé de Roma.

Quem desejar fontes, poderá encontrá-las no Enchiridion Sybolorum, Definitionum et Declarationum (DS 3117- 36ª ed.). Entre os comentaristas e historiadores, é de fácil acesso Giusepe Alberigo, em História dos Concílios Ecumênicos ( Ed. Paulus, 1995, tradução do italiano).

A jurisdição do Bispo de Roma não é um poder concorrente contra o poder “ordinário, imediato e verdadeiramente episcopal” de cada bispo em sua diocese. O ministério petrino é subsidiário ao de cada bispo. O papa não é um “superbispo” ou um “bispo universal”, que pode considerar a terra inteira como sua diocese. O critério para atuar subsidiariamente em outras dioceses é o da necessitas Ecclesiae. O ministério petrino é um serviço à Igreja toda.

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Das promulgações do Concílio Vaticano I, não se pode deduzir jamais a soberania absoluta de um homem, mesmo sendo sucessor de Pedro. Nem se pode concluir que uma modalidade centralizada de exercício do primado seja a única compatível com o dogma.
A modalidade de exercício do ministério petrino, já se disse, deve ser medida segundo o critério da necessitas Ecclesiae, o mesmo critério seguido pelo Concílio Vaticano I.
Lembremos que João Paulo II animou os teólogos a estudarem outras formas do exercício do primado, assemelhadas à que vigorou no primeiro milênio. João Paulo II tinha plena consciência de que a necessitas Ecclesiae, o “bonum animarum”, deve ser o demarcador do exercício do primado (Cultura e Fé, n ° 102/2003).

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Cumpre anotar que a questão da relação entre o jurídico e o sacramental não se esboçou apenas no segundo milênio. Já se delineara nos primeiros séculos do primeiro milênio. Recorde-se que a Igreja Ocidental havia reconhecido, desde os começos, a validade do batismo mesmo quando administrado por egressos da comunidade católica. Distinguia entre a validade e a licitude.
A distinção criava um espaco entre o sacramental e o jurídico. Essa distinção não era reconhecida pelos orientais. Para sua concepção absolutamente sacramental da Igreja, tal distinção não servia para coisa alguma. Entretanto, na realidade, essa posição dos orientais os incapacitava teologicamente para compreender a situação dos que se separaram da grande Igreja.

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Ao longo do segundo milênio a separação se tornou cada vez mais funda, a despeito de tentativas de retorno à união. A despeito do Concílio de Florença (1439), o Oriente resistiu à união e começou a desenvolver a idéia de que a ruptura com Roma já começava a ter relação com a própria estrutura da Igreja.
Em contrapartida Roma mais se convencia de que a recusa ao primado, por parte dos ortodoxos, importava ruptura com o que fora recebido dos Doze, dos quais Pedro sempre fora sinal da unidade. A comunhão com a Igreja de Roma era o sinal da pertença à Igreja.
Impunha-se, então, uma interrogação decisiva. Que pertença à Igreja poderia haver lá, onde houvesse recusa à comunhão com a Sé de Pedro?
Foi a distinção entre validade e licitude da administração dos sacramentos que apontou caminhos para que o Ocidente continuasse a reconhecer, na denominada Ortodoxia, verdadeiros sacramentos.

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O Ocidente sempre marcou fortemente os textos neotestamentários relativos a Pedro, por isso mesmo se manteve, de fato, mais fiel à Tradição, nessa questão. O Oriente, entretanto, na Igreja Ortodoxa, não teve, a partir da ruptura, até hoje, explicação clara e adequada sobre o ministério petrino.

Falam em um primado de honra. Não me parece que o reconhecimento de um “primado de honra”, que algumas Igrejas ortodoxas atribuem ao Bispo de Roma, tenha consistência. O ministério de Pedro não é questão de honra. É serviço especial para o bem do Povo de Deus. O Senhor escolheu Simão, bar Jonas, não para honrar o pobre pescador da Galiléia, mas para ser Pedro, a pedra, a rocha da unidade, órgão, instrumento da promessa, feita à sua Igreja, de que as “portas do mal” não prevaleceriam. Escolheu para que fosse o servidor dos servidores do Povo de Deus.
Aqui, em ligeira digressão, recordo Newman, em sua caminhada a partir do Anglicanismo rumo à Católica. Após longo itinerário intelectual, ele se extasiou com a coerência lógica do princípio, segundo o qual Aquele que revelou a Verdade na história não podia privar os homens de sua proteção viva, que garantisse a transmissão viva e a interpretação fiel dela. Newman descobriu e cantou o “Nunc dimittis” do velho Simeão. Descobriu o dom do ministério de Pedro.

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O que se reconhece a favor do Ocidente, não significa que não tenha havido, nele, desbordamentos da tradição inicial sobre o serviço de Pedro, a ponto de a estrutura sacramental básica da Igreja parecer um tanto obscurecida.

Houve e há, na Católica, quem confunda desdobramentos históricos, provadamente históricos, com dado da Revelação. Em exemplo, podemos referir a nomeação dos bispos pelo Sucessor de Pedro. Essa prática foi adotada no Ocidente por exigência de situações históricas e por que assim postulava a “necessitas Ecclesiae”. Exigência do momento histórico é exigência transitória, não significa que outra forma de escolha de batizados para o múnus episcopal se descompasse da verdade revelada.
Urge, assim, se enfrente a questão de que a forma de exercício do ministério petrino é histórica e não “de fide”. Esse é um dos obstáculos sérios no caminho para a unidade.

A propósito, Herman Joseph Pottmeyer, membro da Comissão Teológica Internacional e professor emérito de Teologia Fundamental, pesquisador sério no solo e subsolo do Vaticano I (1870), fez intervenção muito oportuna no Simpósio do Conselho para a Unidade dos Cristãos, realizado em junho de 2003. Enfrentou a questão do primado e da infalibilidade com clareza e competência.

Expôs e interpretou as definições conciliares a partir das atas do Concílio e superou o maximalismo divulgado e acentuado no séc. XIX.
Marcou que o critério para o exercício do primado é a necessitas Ecclesiae. Histórico, portanto. Critério que ressai do próprio Concílio e que anula a explosividade da interpretação dos maximalistas, para os quais o primado se define à semelhança das monarquias absolutistas do passado. A respeito da posição correta, ensinada por Herman Joseph Pottmeyer, relembro que o número 102 de Cultura e Fé noticia mais amplamente a atuação daquele teólogo, no Conselho para a Unidade dos Cristãos.

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Na realidade, posições maximalistas do Ocidente ou do Oriente cancelam qualquer esperança da unidade buscada pelo movimento ecumênico. O maximalismo, como o minimalismo, obstaculizam os caminhos do retorno à unidade, na verdade e no amor fraterno.
Neste passo, vale anotar que a unidade da Igreja não é um objetivo político. Sua busca é um dever arrebatador, que não se cumpre pelos atalhos do compromisso político. Estamos no terreno da fé. Trata-se da verdade. A verdade não se negocia.
Também neste passo, cumpre lembrar que exigências em nome da verdade só podem ser consideradas ali onde a verdade está inequivocamente demonstrada. Não tem cabida pretender impor como verdade de fé o que, na realidade, é somente uma forma histórica com alguma vinculação à verdade.
Mas, se essa lembrança se impõe, mais fortemente se impõem a honestidade intelectual e a sinceridade do coração quando estão em pauta a força da verdade e a sua irrenunciabilidade.

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Importa marcar bem que o maximalismo não é risco somente do Ocidente.
Quando Igrejas orientais recusam qualquer conteúdo ao primado e ao ministério petrino e pretendem que as Igrejas do Ocidente esqueçam o Vaticano I, como condição para a unidade, assumem como verdade algo que elas mesmas construiram na história, após 1054, e nada tem com a verdade que ressai da Escritura e da Tradição dos Apóstolos e dos Pais da Igreja. Assumem, no caso, uma posição maximalista.

Não é de se pretender impor às Igrejas orientais outra forma do ministério de Pedro diferente daquela que vigorou no primeiro milênio para a Igreja una, santa, católica e apostólica. Isso muito bem viu João Paulo II. E também viu o teólogo Joseph Ratzinger, como se lê em Teologische Prinzipienlehre (München, 1982), fonte principal entre aquelas nas quais me abasteço e cujos ensinamentos repito, neste parágrafo, quase ad litteram. Mas também entendo não podem as Igrejas Ortodoxas, autocéfalas ou não, ignorar o ministério petrino que ressai da Escritura e da Tradição.

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Paulo VI reiteradamente demonstrou que o Ocidente não deve e não quer impor ao Oriente, como únicos, os caminhos meramente conjunturais que a Igreja latina seguiu.

Muito menos quer manter costumes anacrônicos que se colaram na Igreja de Roma. Manifestações rotineiras de poder, feíssimas, e impróprias hoje para evangelizar, como aquelas da tríplice coroa, da cadeira gestatória e do beija-mãos ou beija-pés. Tudo isso foi eliminado. Principalmente por Paulo VI, que aboliu a tríplice coroa e a cadeira gestatória. Os outros costumes anacrônicos já haviam sido deletados antes.

Vale recordar, aqui, aquele gesto de Paulo VI, quando acolheu o Metropolita Melitão, enviado por Demétrio I, Patriarca de Constantinopla. Lembram?
Foi em 1975, na comemoração dos dez anos do abraço entre Paulo VI e Atenágoras e o levantamento da excomunhões mútuas. Ao receber o Metropolita Melitão, representante de Demétrio I, então Patriarca Ecumênico, o Sucessor de Pedro ajoelhou-se e lhe beijou os pés. Demétrio I, ao saber do fato, no mesmo dia, tocado no mais fundo de sua alma, exclamou: Paulo VI superou o Papado! Igualou-se aos Pais da Igreja! Sabem o que significa um Patriarca, Titular da Sé de Constantinopla, igualar alguém aos Pais da Igreja?
O gesto do Sucessor de Pedro sacudiu o Oriente, naquele momento, convocou-o a reformular suas concepções sobre Roma, desenvolvidas e alimentadas a partir de 1054. E, sobretudo, após a invasão de 1204. Bendito seja Paulo VI, santo de Deus!

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Reitero. Penso que o Ocidente não deva postular do Oriente uma doutrina do primado diferente daquela que vigorou no tempo do primeiro milênio. De outra parte, ao Oriente cumpre cessar de apodar como herética a evolução havida na Igreja Ocidental durante o segundo milênio e até hoje. Clamam por isso a verdade objetiva dos fatos, a justiça, o amor fraterno.
O que se impõe é um ato de recíproca aceitação. E de reconhecimento mútuo, em uma catolicidade comum e nunca abandonada, como ensinava o teólogo J. Ratzinger, hoje Bento XVI.

Um ato assim implica conversão, auto-superação, renúncia a vaidades cultivadas com manto de virtudes, a velhos rancores e a modos superficiais de análises. Isso, de ambas as partes. Da parte do Ocidente, a Católica já demonstrou humildade, amor e senso de justiça, através de Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. Jogou-se para a frente. Deu todos os passos necessários para romper os muros da vaidade, do orgulho, dos ressentimentos históricos, da descaridade e da racionalização. Da parte do Oriente cabe seguir os passos do grande Atenágoras, patriarca ecumênico de Constantinopla, na década de sessenta, e dos santos patriarcas que o sucederam.

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Força é sejam banidas, decididamente, corajosamente, formas diplomáticas de expressão, superficialmente laudatórias, grandiloqüentes, tão descabidas hoje que se tornam incompreensíveis ou simplesmente suspeitas de manobra política dos comandos. Quem vai entender, hoje, aqueles tratamentos protocolares que distanciam os irmãos? Impõe-se, como de ambas as partes se tem ouvido, que a relação seja realmente fraterna, sem poses, sem exterioridades e sem fórmulas laudatórias ocas, que não levam nunca a uma conclusão real.
A conversão de que se fala, aqui, entretanto, não é de costumes protocolares apenas. Aqui se fala de um processo espiritual, de uma metanóia, que não pode reduzir-se à esfera dos comandos. Deve ser pregada à totalidade da Igreja do Oeste e do Leste e por ela assumida e vivida na caridade e na verdade, no amor fraterno, na alegria de sermos a Grande Família de Deus, gerada pelo Sangue Redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo.
É preciso que a redescoberta da unidade no plano teológico aconteça também na vida de todo o Povo de Deus. A Igreja toda deve ser preparada espiritualmente, de modo que um Novo Pentecostes aconteça e a paixão pela unidade, na diversidade de dons, lavre como incêndio.

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É curial que a afirmação da possibilidade teológica básica da união entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa não deve levar-nos a conclusões apressadas.
Devem ser criados espaços espirituais para o teologicamente possível, contemplando-se tudo sob o prisma do “urgente mandamento da unidade”. Unidade que não significa uniformidade.
Urge ter presente que não é a unidade que precisa ser justificada. São os que resistem à união que devem justificar sua recusa.
Mas como justificar separações? Fechando nossa inteligência e o nosso coração para os diferentes? Suspeitando e condenando a priori? Racionalizando orgulhos e vaidades a ponto de os termos por virtudes?
Prognósticos teóricos de pouco valem, a não ser que sejam postos como tarefa a enfrentar e realizar, na verdade, na justiça e no amor.

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Para nos tornarmos agentes da unidade, com alegria e eficácia, conviria assimilássemos as cartas apostólicas “ORIENTALE LUMEN” e “UT UNUM SINT”, de João Paulo II (1995). E também seria muito oportuno lermos e assimilarmos os conteúdos oferecidos pela CNBB, no opúsculo sobre a prática do ecumenismo, editado por Edições Loyola.
Se nos convertermos e nos abrirmos, por graça, a uma viva consciência de Igreja, ao poder do Espírito Santo, dimensões mais vastas do que os estreitos limites paroquiais e diocesanos se desvelarão. Perceberemos a vastidão de beleza pluriforme da Casa do Senhor, lugar onde, já aqui na terra, a reunião de todos na Trindade começa. Reunião, comunhão, para a qual fomos criados. Povo reunido, na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. “De unitate Patris, Filii et Spiritus Sancti plebs adunata”, como queria Cipriano de Antioquia, bispo, Padre da Igreja, apaixonado pela unidade, mártir do ano 258. Como, repetindo os Pais da Igreja, proclamava Henri de Lubac com insistência, em “Meditation sur l'Eglise”, lá pela metade do séc. XX.

Com essa percepção, os nossos limites estreitos se implodem. Encontramo-nos, então, na vastidão do universo da graça. Na única comunidade verdadeiramente aberta para todos quantos buscam a verdade, a justiça, o amor, a alegria da identidade do homem. Ali, onde, libertos dos limites do geográfico, do étnico, do sociológico e do político, fazemos a experiência daquela alegria de sermos todos um. Todos irmãos no Senhor nosso Deus. Todos com um só coração e uma só alma.

Miserere nobis. Domine, secundum magnam misericordiam tuam.
Sub tuum praesidium confugimus, Sancta Dei Genitrix.