segunda-feira, 20 de junho de 2011

Revista Cultura e Fé, n. 84/1999
Eno Dias de Castro



UMA QUESTÃO ATUAL DE ESCATOLOGIA

Neste século o “éschaton” voltou ao lugar teológico que lhe cabe. A Escatologia deixou de ser um dos últimos capítulos dos tratados teológicos. Empolgou a Teologia.
Um sopro do Espírito? Talvez. Afinal, o Senhor nosso Deus é o “Éschatos”, o Extremo último, o Ômega, a Plenitude para a qual tende o ser humano. Ele é a fonte e o sentido da vida. A Salvação do homem. O Reino. A Escatologia é, no conjunto, a doutrina da verdade salvífica. Tem de estar presente em todo o território teológico. É ela que marca e demarca esse território.
Em meio ao sopro renovador, surgiram torvelinhos e borrascas. Até furacão. No torvelinho de questões suscitadas, punham em debate a própria Ressurreição do Senhor e, de conseqüência, a nossa.
Paulo VI, vigilante, de pé, sem medo, defendia a fé recebida dos Doze. Alertava, orientava e confirmava os irmãos. Na sua fragilidade física parecia um gigante enfrentando o olho do furacão.
No simpósio internacional “Et ressurrexit tertia die”, de 1968, largou os trabalhos escritos e bradou para a Igreja inteira, definindo limites: “Se não conservamos a fé no fato empírico da experiência dos Apóstolos sobre a ressurreição, transformamos o Cristianismo numa gnose”!
Enquanto o Sucessor de Pedro enfrentava o erro fundamental desfigurador da Ressurreição, agregavam-se outros debates de diversos segmentos teológicos. Inclusive aquele dos teólogos da ressurreição na morte. É sobre a escatologia desse segmento, que faço estes registros.
Os teólogos da ressurreição na morte definem a visão da problemática escatológica muito claramente, dizendo: A grande questão não é o fato da ressurreição de Cristo, nem se Deus ressuscitará o homem inteiro, com sua dimensão corporal. Isto é indiscutível para nossa fé. A questão é outra. É a questão do “quando ocorrerá” e do “em que consistirá” a ressurreição corporal.
A resposta que dão à questão assim formulada é a de que a ressurreição acontece no momento mesmo da morte. Na morte morre o homem todo. Morre inteiramente. Nada de alma imortal separada do corpo na morte e sujeita a juízo particular. Na morte acontecem o juízo final e a ressurreição. Na morte de cada um. E o que ressuscita não é o corpo é a “corporeidade”.

I
A onda canceladora da imortalidade da alma avançou rápida e cresceu. Nós do povo nem percebemos o avanço.
Fui despertado, comecei a dar-me conta, com atraso, quando há duas décadas percebi que a palavra alma estava sendo banida das traduções da Escritura, em diversos versículos nos quais sempre havia figurado. Em exemplo, aponto Mt 16,26; Mc 8,36; Lc 21,19. Onde não conseguiam mudar, vinha nota de rodapé, “esclarecendo” que alma queria dizer pessoa (Bíblia de Jerusalém, 1Pd 1,9, nota “f “- Paulinas 1975).
Só avaliei a dimensão da tentativa de cancelamento do conceito cristão de alma , quando deparei com o texto litúrgico de uma Santa Missa por um amigo falecido (de corpo presente). Pelo texto impresso se rezava, ipsis verbis, para que o falecido “tivesse tido uma ressurreição feliz”. Só não sei porque se pedia que “tivesse tido”. A situação do “ressuscitado”, segundo a nova leitura da escatologia, já estava decidida no momento mesmo da morte. Quando se pede, tem-se em vista o futuro aberto. O passado esta fechado. Não se muda. A não ser que se entenda que Deus dê a graça da “ressurreição feliz” face à intercessão pós-morte. Entretanto, no caso de tal entendimento, parece que a formulação deveria ser outra.
O corpo do meu amigo estava ali, sem vida, ante os olhos de todos, e se dizia que tinha ressuscitado e se postulava tivesse tido uma ressurreição feliz. O comentarista ficou surpreendido, mas manteve a calma. Alguns dos participantes, confusos, se entreolharam. A maioria não se deu conta. Ou seus ouvidos já se haviam acostumado àquela fórmula. Soava-lhes tranqüila. Como expressão da fé.
Então percebi como aquilo estava sendo orquestrado de dentro de estruturas fundas da própria Igreja. “Lex orandi, lex credendi”. A própria oração oficial fora contaminada e a contaminação se manifestava como “lei da fé”.
A nova leitura escatológica da fé cristã avançara rápida. A imortalidade da alma humana e o juízo particular estavam sendo negados no próprio ato das exéquias.
* * *
Quando percebi o fato, dei início a estes registros, mas desisti. Desisti, porque verifiquei que o folheto com o texto referido havia sido tirado de circulação. Supus que algum comando hierárquico, consciente do múnus magisterial, houvesse adotado providências. Entretanto, fui surpreendido novamente, em outro ato fúnebre. O comentarista, em introdução livre, reverenciando a memória do falecido, afirmou, com voz clara, forte e convicta: Meus irmãos e minhas irmãs, este nosso irmão já ressuscitou.
A afirmação me renovou o mal-estar que experimentara, nas exéquias do meu outro amigo. Quem afirmava a tese da ressurreição no momento mesmo da morte era um seminarista. E o fazia na presença de seu bispo.
Felizmente, o ato próprio de encomendação repôs a doutrina e a fé da origem. Suplicava-se ao Senhor, nas orações daquele ato, que, em sua misericórdia, recebesse a alma do falecido já agora e lhe desse a ressurreição gloriosa do corpo no Juízo Final, no último dia.
Experimentei a confiança e a alegria daquela oração. Aquilo era o que ficaria nos ouvidos dos presentes, pensei.
Entretanto, o fato reavivou-me a preocupação com a questão. Estudante de uma casa de formação sacerdotal estava imbuído da tese de que a ressurreição acontece na morte de cada um. Isso me levou a, finalmente, retomar estes registros. A questão continua viva, aqui. No extremo sul do Brasil.


II
Os teólogos da ressurreição na morte entendem que não seria científico nem bíblico o esquema “corpo-alma”. O homem seria um ser uno. Uma unidade indivisível. Nada de alma imortal, separada do corpo na morte. Com a morte do corpo, morre inteiramente o homem. O esquema “corpo-alma”, integrante da doutrina da Igreja, teria sido infiltração de filosofia grega. Dualismo platônico.
Platonismo. Dualismo. Que platonismo? Que dualismo?
O termo dualismo está sujeito a muitas leituras. A Comissão Internacional de Teologia sugere o uso da palavra dualidade, para evitar evocações superficiais do dualismo platônico, com as confusões conseqüentes.
Primeiro, pela fé da Igreja, o estado de sobrevivência da alma humana separada do corpo na morte não é definitivo. É intermédio, transitório, ordenado ao termo final da ressurreição. Por esse dado fundamental a antropologia cristã aparta-se abissalmente da antropologia platônica.
Por sobre este aspecto decisivo, há também o dado de que o dualismo platônico considerava a alma como o verdadeiro homem, enquanto o corpo seria uma prisão detestável. Para o platonismo a ressurreição seria um retorno abominável ao cárcere. Confundiam, inclusive, ressuscitar com reviver.
A Igreja não tomou da antigüidade a resposta que dá à questão em tela. Sua resposta está na perspectiva cristológica. Ao bom ladrão o Senhor, no momento de sua morte, garantiu: Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso. E quanto ao próprio Senhor, sabemos que ressuscitou ao terceiro dia, deixando o sepulcro vazio. O bom ladrão morreu no mesmo dia em que o Senhor foi morto. Seu corpo foi jogado na vala comum, mas, no mesmo dia, ele, o bom ladrão, passou a viver na comunhão com Deus (“en to met’emou ese en to Paradeiso”, no texto grego de Lucas, 23,43). No mesmo dia o corpo do Senhor foi enterrado em um sepulcro novo e só ao terceiro dia após a morte seu corpo ressuscitou, deixando vazio o sepulcro. Está, aí, na Escritura, a sobrevivência da alma no perecimento do corpo. Da alma em que subsistia o “eu” do bom ladrão.
A alma separa-se do corpo, na morte. Isso, entretanto, não implica desfazimento de sua relação com o corpo. A alegria da certeza de que seu corpo ressuscitará e a plenitude da nova compreensão da vida em Deus afastam qualquer sofrimento. Mais. Tornam-se fonte de alegria e paz. O cristão não desvaloriza o corpo. Deve tê-lo como templo do Espírito Santo, destinado à comunhão com o Senhor seu Deus, na glória da Pátria Trinitária, na ressurreição do último dia. Deve zelar por ele e defendê-lo contra as agressões injustas, em si e em todos os homens. Há até mesmo um mandamento divino para protegê-lo. A Igreja o defende desde o primeiro instante da concepção, momento em que o Senhor nosso Deus lhe infunde a alma inteligente, para que, como forma do corpo, lhe imprima a dignidade de pessoa, destinada à liberdade de filhos seus, criados à sua imagem e semelhança.

* * *

A realidade está aí. Negam muitos, com desenvoltura, um dado da fé recebida na origem.
Não sei bem desde quando começou a instalar-se o fato. Mas, penso que foi na segunda metade deste século XX. Agora, nas últimas décadas, a questão assume espessura impressionante, em versões mais sofisticadas.
Dizem os entendidos que essa atual pretensão tem predecessores salientes em Adolf Schlater (+1938) e Karl Stange, (+1959), teólogos protestantes. Apontam também Paul Althaus, outro teólogo protestante, que tratara a matéria anteriormente.

III
O que ocorre tão pacificamente parece-me um assalto por dentro.
O termo “assalto” pode parecer impróprio. Esclareço que não uso o termo pejorativa ou agressivamente. Quem assalta não é necessariamente um mal intencionado. Pode alguém planejar a derrubada de uma posição, imaginando-se com a obrigação de fazê-lo e fazê-lo discretamente, por métodos imaginados prudentes.
Suponho honestidade intelectual nos que tentam dar outra versão à doutrina bimilenar da Igreja. Eles não intencionam a destruição dos conteúdos. Pensam que os esquemas, nos quais foram sedimentados os conteúdos da fé, são meramente culturais. Querem mudar aquilo que consideram ser apenas esquema simplificador.
Reconhecer-lhes essa condição, no entanto, não nos desobriga de opor-nos, pois, nós, povo cristão, continuamos crendo que a unidade composta de corpo e alma imortal não se reduz a mero esquema cultural. Constitui a ontologia do homem. Para nós, a imortalidade da alma é matéria integrante da Revelação do Testamento Novo. E temos que esse dado da fé já fora explicitado induvidosamente nos últimos períodos do Antigo Testamento (revelação a caminho).
Face ao que recebemos na fé apostólica, referente à alma, à sua imortalidade e ao “juízo particular” (escatologia intermédia ou próxima), as teses da ressurreição no momento mesmo da morte não podem ser homologadas.
* * *
Falei em assalto à fé. Para mim, pela rapidez e eficiência, com que essa tese permeou algumas estruturas da Igreja, desenha-se um assalto.
Um assalto feito assim, por dentro, sem ruído, por tomadas de posições estratégicas, capilarizando as consciências, é mais eficiente do que qualquer agressão aberta. Grande parte do povo vai assimilando e, quando se der conta, já não se espantará nem oporá resistência.
Não se falará mais em “alma” e, obviamente, com o tempo, a fé na sua sobrevivência se extinguirá. Esse parece o plano. Mas, se esse é o plano, enganam-se. Há uma promessa do Senhor com a qual não contam. As portas do erro não prevalecerão. Restará sempre um pequeno resto, reduto do “sensus fidelium”, firme na fé apostólica.
* * *
Sem mordência, verifico, em algumas obras, que teólogos da nova leitura começam a falar como vitoriosos e purificadores da fé. Consideram-se senhores da situação.
Alcançaram posições relevantes. Conseguiram tomar alguns postos decisivos para sua estratégia. Deram certo cunho de cidadania à teoria da morte total (Ganztod). É o velho tanatopsiquismo voltando. Exemplo? O “Missale Romanum”, de 1970. Excluíram dele a palavra alma, no texto relativo às exéquias. Isso facilitou a impressão do folheto mencionado ao início. Mais. Imprimiram nele aquele prefácio ambíguo: “Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível”.
A ambigüidade do texto é patente. Está em que sugere ser-nos dado um outro corpo imperecível, tão logo desfeito o corpo mortal. O texto foi reproduzido no Catecismo da Igreja Católica, mas num contexto em que se afirma a salvação da alma no estado de espera da futura ressurreição. Ali, naquele contexto, embora criticável sua inserção, não causa equívoco. Pelo contrário. Retira-lhe a ambigüidade. Entretanto, fora daquele contexto, funciona como uma cunha da nova escatologia. Confirma-se, aí, a estratégia do assalto por dentro.
Eles admitem que a “manualística” continuará talvez, por certo tempo, a usar o termo “alma”. Mas esperam que, banido dos acampamentos da exegese e da teologia, será eliminado da pregação e da catequese, vindo a ser extirpado, por fim, dos manuais.
Palestras, entrevistas, livros difundidos por livrarias católicas e aulas de teologia consolidam o domínio da “nova leitura da fé”. A mídia abre-lhe as portas. Haverá debates, como o que ouvi, no ano passado, num canal de televisão. O que deveria ser debate transformou-se em aula televisionada. O teólogo leigo convidado, passou todo o tempo a idéia de que o homem morre todo e ressuscita no instante da morte. Os demais debatedores, embora católicos, não tiveram condições de competir com o professor.
Mergulhado na “penumbra teológica”, parte do povo ouvinte, sem possibilidade de discernir o objeto e o alcance das afirmações, já foi dopado. Até que ponto não sei.
IV
Não vou analisar, uma por uma, as alegações em que pretendem fundar-se os teólogos da mortalidade da alma e da ressurreição na morte. Tomo um caminho curto e singelo. Relembrarei qual é a fé que a Igreja tem por recebida na origem, com a citação ou a indicação de prova documental induvidosa. Isso feito, cada um poderá avaliar a nova leitura escatológica.
* * *
Transcrevo, primeiro, uma síntese constante da introdução de documento da Comissão Internacional de Teologia, intitulado A Esperança Cristã na Ressurreição. Documento aprovado na sessão plenária de 1990 e editado com a aprovação do Cardeal Joseph Ratzinger, Presidente da Comissão, nos termos dos estatutos da mesma Comissão.
Utilizo a tradução da Editora Vozes, de 1994:
“A resposta cristã às perplexidades do homem atual, e do homem de qualquer tempo, tem a Cristo ressuscitado como fundamento e está contida na esperança da gloriosa ressurreição futura de todos os que são de Cristo, a qual se realizará à imagem de sua própria ressurreição: ‘Assim como trazemos a imagem do Adão terreno, traremos também a imagem do (Adão) celestial’ (1Cor 15,49), isto é, do próprio Cristo ressuscitado. A nossa ressurreição será um acontecimento eclesial em conexão com a parusia do Senhor, quando se completar o número dos irmãos (cf. Ap 6,11). Entretanto, há, imediatamente depois da morte, uma comunhão dos bem-aventurados com Cristo ressuscitado (céu), a qual pressupõe uma purificação escatológica (purgatório) caso seja necessária. A comunhão com Cristo ressuscitado, prévia à nossa ressurreição final, implica uma determinada concepção antropológica (corpo-alma) e uma visão da morte especificamente cristãs. É em Cristo ressuscitado e por ele que se entende a ‘comunicação de bens’ ( cf. Vaticano II, LG, 49), existente entre os membros da Igreja, da qual o Senhor ressuscitado é a Cabeça” (ps. 13/14).
Nesse texto introdutório, a Comissão Internacional de Teologia resume, em termos muito cuidados, o ensinamento básico da Igreja de todos os tempos sobre o horizonte escatológico. Anote-se que a Comissão Teológica afirma sem reticências que essa é a concepção especificamente cristã.
* * *
A síntese transcrita, exprime, com cuidado teológico, aquilo que recebemos na fé batismal.
Podemos vazar a síntese da Comissão, em outros termos.
Por exemplo:
- A resposta cristã às interrogações sobre o fim da história fundamenta-se no Senhor Jesus Cristo ressuscitado. Está contida na fé e na esperança da ressurreição final e gloriosa de todos os que são de Cristo (os que vivem na amizade de Deus). A ressurreição não será acontecimento isolado, mas um acontecimento eclesial.
- Os que morrem, antes desse acontecimento eclesial, se purificados de todos os seus pecados, entram imediatamente na felicidade da comunhão com Cristo (céu), ou passam primeiro por uma purificação escatológica (purgatório), se necessária.
A comunhão com Cristo ressuscitado, prévia à nossa ressurreição, implica uma determinada concepção antropológica (corpo-alma), que torna viável a sobrevivência do homem, nessa comunhão, logo após a morte, antes da ressurreição do último dia.
* * *
Isso é consabido. Essa foi sempre a fé da Igreja do Senhor.
Abra-se o “Catecismo da Igreja Católica”. Preliminarmente, veja-se o documento que ordena a publicação, para avaliar seu peso. No mérito, examine-se qual escatologia que ensina.
O documento é a Constituição Apostólica “Fidei depositum”, de 11 de outubro de 1992. Nele, o Sucessor de Pedro apresenta o Catecismo da Igreja Católica como norma para o ensino da fé.
Textualmente:
“O ‘Catecismo da Igreja Católica’, que aprovei no passado dia 25 de junho e cuja publicação ordeno em virtude da autoridade apostólica, é uma exposição da fé da Igreja e da doutrina católica, testemunhadas ou iluminadas pela Sagrada Escritura, pela Tradição apostólica e pelo Magistério da Igreja. Vejo-o como um instrumento (...) a serviço da comunhão eclesial e como uma norma segura para o ensino da fé. (...).
A aprovação e a publicação do ‘Catecismo da Igreja Católica’ constituem um serviço que o Sucessor de Pedro quer prestar (...): o serviço de sustentar e confirmar a fé de todos os discípulos do Senhor Jesus (cf. Lc 22,32), como também de reforçar os laços da unidade na mesma fé apostólica. (...) Este catecismo lhes é dado a fim de que sirva como texto de referência, seguro e autêntico, para o ensino da doutrina católica (...)”. (Ed. portuguesa, Vozes, Paulinas, Loyola e Ave Maria, ps. 10 e 11.)
Marque-se que o Sucessor de Pedro aprovou o Catecismo por força da autoridade apostólica, invocando o múnus petrino de confirmar os irmãos, fundado na Escritura (Lc 22,32) e na Tradição dos Apóstolos. Esse é o peso do conteúdo aprovado.
* * *
Portanto, no mérito, no conteúdo, o ensinamento escatológico do Catecismo reflete a fé da Igreja Católica e Apostólica. A palavra do Sucessor de Pedro, que se transcreveu, garante isso.
Dispenso-me da transcrição dos textos. Apenas os aponto. Estão sob os números marginais 362/368, 988/995, 1020/1050, com abundância de citações da Escritura, dos Santos Padres (Pais da Igreja), do Magistério e dos Santos. Reafirma a fé apostólica.
Nos textos indicados mais uma vez se afirma o conteúdo do ensinamento da Igreja, desde a origem.
O ser humano é uma unidade composta, constituído de corpo e alma inteligente. Mantém que, na morte, acontece o juízo particular. A alma humana, imortal, com toda sua história e segundo sua história, salva-se ou se condena. Os salvos, se completamente justos e puros, entram na alegria eterna da Pátria Trinitária. Imediatamente, se completamente puro. Após uma purificação, se ainda necessária. Os outros, aqueles que repudiam a comunhão com seu Deus e Pai, que repelem o amor de Deus e dos irmãos, que optam contra o viver em Deus, assumem para sempre a crispação no ódio e no desespero da solidão sem fim.
A lição do Catecismo é a mesma que Bento XII recolheu da Tradição Apostólica e definiu pela Constituição dogmática “Benedictus Deus”, de 29 de janeiro de 1336.
O texto da definição de Bento XII:
“Por esta Constituição, a fim de valer para sempre, com a nossa autoridade apostólica definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as almas de todos os santos mortos antes da Paixão de Cristo (...) e de todos os outros fiéis mortos depois de receberem o santo Batismo de Cristo, nos quais não houve nada a purificar quando morreram (...) ou ainda, se houve ou há algo a purificar, quando, depois da sua morte tiverem acabado de fazê-lo, (...) antes mesmo da ressurreição nos seus corpos e do juízo geral, e isto desde a ascensão do Senhor e Salvador Jesus Cristo ao céu, estiveram, estão e estarão no Céu, no Reino dos Céus e no paraíso celeste com Cristo, admitidos na comunidade dos santos e dos anjos. Desde a paixão e a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, viram e vêem a essência divina com uma visão intuitiva e até face a face, sem mediação de nenhuma criatura” (DS 1000*).
É também o mesmo ensinamento que o Concílio Vaticano II repetiu, na Constituição pastoral Gaudium et Spes, 14, (Compêndio, 242).
Transcrevo:
“O homem, ser uno, composto de corpo e alma, sintetiza em si mesmo, pela sua natureza corporal, os elementos do mundo material, os quais, por meio dele, atingem a sua máxima elevação e louvam livremente o Criador. (...) Não se engana o homem quando se reconhece superior às coisas corporais e se considera como algo mais do que simples parcela da cidade dos homens. Pela sua interioridade transcende o universo das coisas: tal é o conhecimento profundo quando reentra no seu interior, onde Deus, perscruta os corações, o espera, e onde, pessoalmente, sob o olhar do Senhor, decide do seu próximo destino. Ao reconhecer, pois, em si uma alma espiritual e imortal, não se ilude com uma frágil fantasia, fruto apenas de condições físicas e sociais. Atinge, pelo contrário, a verdade profunda das coisas”.
O Catecismo também refere, em nota, o Credo do Povo de Deus de Paulo VI (1968).
Veja-se o tópico, objeto da nota:
“Cremos na vida eterna. Cremos que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo, quer se devam ainda purificar no Purgatório, quer sejam recebidas por Jesus no Paraíso, no mesmo instante em que deixam seus corpos, como sucedeu com o Bom Ladrão, formam o Povo de Deus, para além da morte, a qual será definitivamente vencida no dia da Ressurreição em que estas almas se reunirão aos seus corpos (tópico “Profissão de Fé”, p. 6 da tradução da Tipografia Poliglota Vaticana, editada por Edições Paulinas, no mesmo ano de 1968).
* * *
A fé ensinada pelo Catecismo é a Fé de Pedro. Nem preciso lembrar o Concílio de Latrão V (1512-1517), que condenou a tese aristotélica reduzida por Averroes, conforme a qual a alma humana individual seria mortal. Deixo de sinalar a reafirmação direta ou indireta da imortalidade da alma encontrada em diversos Concílios. Inclusive naqueles dos primeiros séculos. Não aponto o privilégio da Assunção da Mãe Bendita com corpo e alma, que é definição “ex cathedra”. Omito as indicações dos inúmeros pronunciamentos dos Sucessores de Pedro, através dos séculos, explícitos ou implícitos. Como o de Pio XII na encíclica Humani generis, de 1950 (DS 3896). Abstenho-me de apelar para a lição dos Santos Padres. A muitos deles recorre o Catecismo, sob os números apontados. Não invoco o testemunho dos mártires, desde Estêvão, e o culto que a Igreja lhes prestou conforme atesta a arqueologia. Calo, por enquanto, a lição dos santos, entre os quais os grandes místicos da história da Igreja, embora não me saia da memória, durante a digitação, a lição extraordinária de Catarina de Sena, que Paulo VI proclamou doutora da Igreja, em 1970, no auge dos debates sobre a Ressurreição.
* * *
Recordo, por fim, manifestação da Congregação para a Doutrina da Fé, emitida mais de vinte anos antes do Catecismo.
Fundada na Escritura, tendo bem presente a advertência de que não devemos ter medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma (Mt 10,28), aquela Congregação, na Carta Recentiores episcoporum Synodi, devidamente assinada pelo Cardeal Prefeito e pelo Secretário, documento não anônimo portanto, regularmente publicado em AAS 71 (1979) 941, lançou alerta incisivo para a defesa do ensinamento escatológico da Igreja, constante do Depositum Fidei.
Lá está:
“(...) a Igreja afirma a continuidade e a subsistência , depois da morte, de um elemento espiritual (alma) que está dotado de consciência e vontade, de forma a que subsista o mesmo ‘eu’ humano, carente entretanto do complemento do seu corpo”.
V
Está relembrada a fé da Igreja, na qual se mantém a antropologia sintetizada no esquema corpo-alma (alma imortal), que se equaciona com a dupla fase escatológica. Juízo particular, na morte de cada homem. Juízo final, universal, na ressurreição do último dia.
Para nós, que cremos na ressurreição da carne, a carne ressuscitará no juízo do último dia, transformada pelo poder de Deus, reintegrando o homem. O corpo transformado, se unirá à alma imortal, na qual, após a morte, continua subsistindo o mesmo “eu”. O corpo mortal sucumbe, mas sobrevive a alma, na qual subsiste o “eu”, garantindo a continuidade entre o que morreu e o que ressuscitou. Não se trata de reviver na mesma condição terrestre. Trata-se de ressuscitar o corpo em novo estado, pelo poder do Senhor nosso Deus. Ao modelo do Ressuscitado.
* * *
A nova leitura da escatologia nega a imortalidade da alma. Repele a fé no juízo particular e a salvação da alma separada do corpo, na espera do juízo final do último dia. Defende a tese de que, na morte, morre o homem todo e é ressuscitado.
Quando se pergunta como explicam a continuidade entre o homem que morreu e aquele que ressuscita, eles respondem que após a morte pode restar algo, o peculiar do homem, a “corporeitas”. A corporeidade que conserva toda a história daquele que morreu. “Este algo não é o cadáver que deixamos”, pois a matéria do corpo morto se decomporá em seus átomos para sempre.
De repente, a matéria “em si” (átomos, moléculas, sua organização)) nada mais significa, sob o argumento de que a matéria não pode alcançar novo estado, estado de glorificação ou de perfeição. Entendem que, atingindo o homem sua liberdade ao alcançar sua condição definitiva na morte, deve ter-se livrado definitivamente de seu corpo, do mundo, do tempo e da história.
Curioso. Como prosseguir falando em corporeidade, se negam toda a relação com a matéria? Negam a subsistência da alma, em nome da unicidade do ser humano, mas terminam por proclamar a persistência de uma realidade identificadora da pessoa, separada do corpo. O Catecismo Holandês e vários representantes da releitura escatológica não estarão dando outro nome para aquele elemento que se conceituava como alma? Não terminam afirmando precisamente aquilo que negavam na base de partida de suas teorias?
Se pretendem tornar mais palatável à “ciência moderna” a concepção cristã, bíblica, do ser humano, não poderão escapar quando colocada, sobre a mesa do debate com a ciência, a própria ressurreição.
VI
Devo parar por aqui. Não estou examinando uma por uma as alegações teológicas da Ganztod. Nem aquelas com que pretende atribuir contradições ao esquema corpo-alma, como a questão do tempo, do não-tempo e do sair do tempo. É um pseudo-problema. A eternidade não é o relógio parado. É sumo acontecer. Nem sequer analiso a alegação de que não seria bíblico falar em alma separada do corpo na morte. Sabe-se que “o apelo à Bíblia é somente uma evidência aparente”, como demonstra Ratzinger, no tratado que indicarei mais adiante. Sabe-se que o próprio Althaus veio a admitir, em obra posterior à sua posição inicial, que a Bíblia contém o esquema corpo-alma. Quanto ao sono da alma na espera da ressurreição, de que fala Lutero, desvale discutir. Se, conforme a Ganztod, a alma morre com o corpo, quem é aquele que vai dormir?
Faço somente mais uma observação.
Vários teólogos “da morte do homem todo”, morte total (Ganztod), proclamam que a idéia de imortalidade da alma atentaria contra atributo divino. Talvez esse entendimento tenha sido assumido contra a Ilustração alemã, cujos traços se desenham no grito de Fichte: “O que se chama morte não pode interromper minha obra. Ergo minha cabeça corajoso. Eu sou eterno!”. Para se contrapor a isso, Karl Barth sentencia: O homem morre todo. Dê-se um basta radical à pretensão da imortalidade da alma. Imortal, só Deus.
Não se confunda o grito de Fichte com a fé católica na imortalidade da alma. Seria um equívoco por demais espesso. Estar-se-ia esquecendo algo fundamental. “Aquele que é”, o “EU SOU”, é o Onipotente, o Onisciente. Pode criar tanto seres materiais, compostos, divisíveis, mortais, quanto seres espirituais, simples, indivisíveis, imortais, sem que o ser que Ele possui “ex se” seja afrontado em seus atributos. Além disso, imortal não significa eterno necessariamente. O ser criado, teve um começo. Não é eterno. Mas pode ser imortal, criado para perdurar, para não morrer. Reconhecer que o Senhor nosso Deus, Uno e Trino, criou o homem para viver e o criou à sua imagem e semelhança, nada tem a ver com um orgulho iluminista, que se afirma eterno. O Senhor nosso Deus, o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, é o Deus dos vivos. O Deus da vida.
* * *
Cada um avalie a nova leitura da fé elaborada pelos teólogos da mortalidade da alma e da ressurreição no momento mesmo da morte, em cotejo com a fé apostólica da Igreja-testemunha, relembrada aqui. Se a insuficiência destes registros não permitir um cotejo completo e objetivo, sugiro, primeiro, o estudo do documento da Comissão Internacional de Teologia, antes citado. Sugiro, em segundo lugar, se estude a obra do teólogo, hoje prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, intitulada Escatologia. Constitui o Tomo IX do Curso de Teologia Dogmática (Johann Auer), tradução espanhola, editado por Herder (Barcelona), na terceira edição, de 1992.
* * *
Concluo. É o momento de recorrer à Doutora da Igreja, cujo nome não me saiu da memória enquanto digitava estas notas.
Entrego a conclusão a Catarina de Sena, mulher santa e, por isso mesmo, valente, que morreu aos trinta e três anos de idade. Ela terminou a vida na dedicação aos pobres atingidos pela peste negra, no séc. XIV, após ter enfrentado os poderosos do seu tempo em toda a Europa, num momento crítico da história da Igreja. Em 1367, aos vinte anos, já encontramos Catarina pulsionada pela audácia da fé, reunindo o povo para anunciar o Senhor Ressuscitado. As conversões que ocorriam com a sua pregação provocavam a atenção do mundo. A Igreja a reconheceu como exemplo de seguimento evangélico ao Senhor, canonizando-a, em 1461. Fez mais. Como já sinalei, proclamou-a doutora, em 1970.
A obra principal de Catarina, ditada a auxiliares, em 1378, é “O Diálogo”.
Donde recebeu as lições de teologia constantes dessa obra? Nunca freqüentou escola. Hauriu sabedoria e conhecimento, de joelhos. Na própria Fonte da Sabedoria.
Os “cientistas da fé” não aturam se diga isto e nisto se busque a inteligência da fé. Não importa. O Senhor nosso Deus sempre agiu assim, na história de seu Povo. Elegeu quase sempre instrumentos mínimos, para manifestar-se e confortar a Revelação Pública normativa.
A lição da Santa de Sena, Itália, se equaciona perfeitamente com a Escritura e com a Tradição, depositada na Igreja de Pedro, a Igreja-testemunha. As pormenorizações que Deus Pai lhe ditou só confirmam e iluminam o que recebemos do Filho Unigênito do Pai, Verbo, Sabedoria do Pai, Nosso Senhor Jesus Cristo, ou a respeito dEle, através dos Apóstolos sempre assistidos pelo Espírito Santo da Graça e da Verdade.
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Abro “O Diálogo”, na tradução do italiano por João Alves Basílio O.P. (2ª ed., Paulinas, 1984).
Catarina dita o que lhe transmite Deus Pai.

1. A felicidade dos salvos:
“O homem justo, ao encerrar a vida terrena no amor, (...) para sempre continuará a amar no grau de caridade que atingiu até chegar a Mim. (...) Será julgado na proporção do amor.
Por terem vivido no meu amor e no amor dos irmãos, (...), os bem-aventurados desfrutam dos bens pessoais e comuns que mereceram. Estabelecidos entre os anjos e santos, com eles se rejubilam na proporção do bem praticado na terra. (...) Entre si congraçados na caridade, comunicam-se, de modo especial, com aqueles que amaram no mundo. (...) Conservam-no, partilham-no profundamente entre si. Com maior intensidade. Agregados à felicidade geral.
Não penses que a felicidade celeste seja apenas individual. Não! Ela é participada por todos os cidadãos da Pátria. Homens e anjos.
Quando chega alguém à vida eterna, todos sentem sua felicidade da mesma forma como ele participa da alegria de todos. Não no sentido de que os bem-aventurados progridam ou se enriqueçam, pois todos são perfeitos e não necessitam de acréscimos. É uma felicidade, um júbilo, uma alegria que se renova interiormente, ao tomarem conhecimento da plenitude espiritual do recém-chegado” (o.c., ps. 94/96).

2. Os salvos e sua relação com o corpo:
“Os bem-aventurados desejam recuperar o corpo. Todavia não sofrem por sua ausência. Alegram-se na certeza de que essa aspiração será realizada. A ausência do corpo não lhes diminui o prazer, não é angustiante, não faz sofrer.(...) De fato, nenhuma perfeição lhes falta. Não é o corpo que faz feliz a alma, mas o contrário. Quando esta recuperar corpo no dia do juízo, participará da plenitude e da perfeição da alma. Naquele dia, (...) o corpo ficará imortal, sutil, leve. (...) Tal propriedade lhe advém, não de uma virtude própria, mas por uma força que gratuitamente concedo à alma, que foi criada à minha imagem e semelhança num inefável ato de amor.
Tua inteligência não dispõe da capacidade necessária para entender (...) a felicidade dos santos. Que prazer sentem na minha visão, que satisfação ao recuperar o corpo glorificado! Até o juízo final não o possuem, mas sem sofrimento. Suas almas já são perfeitas e o corpo apenas virá participar dessa plenitude” (ps. 96/97).

3. A relação entre os salvos e o corpo glorioso do Senhor:
“Estava Eu falando da perfeição que o corpo ressuscitado receberá da humanidade glorificada de Jesus, a qual vos dá a certeza da ressurreição.
No seu corpo brilham as chagas, sempre vivas. Conservam-se as cicatrizes a implorar continuamente perdão para vós a Mim, Pai Eterno. Os bem-aventurados assemelhar-se-ão a Cristo na alegria e no prazer: os olhos dos santos serão como os do Ressuscitado, as mãos como suas mãos, todo o corpo igual ao seu. Unidos a Mim, estarão unidos a Ele, que é um Comigo. Serão felizes vossos olhos ao ver o corpo ressuscitado de meu Filho” (o.c., p. 97).
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A lição de Deus Pai, transmitida a Catarina para nós, não é outra, no fundamental, do que aquela que a Igreja recebeu do Verbo da Vida, através dos Doze.
Por meio de um de seus santos e doutores, o Senhor nosso Deus veio confirmar em nós a alegria da fé. Veio reavivar a esperança que é posse antecipada. Sua manifestação ilumina e conforta a resposta à questão escatológica, objeto destes registros.
Demos graças ao Senhor nosso Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.





















*DS - Denzinger-Schönmetzer 1000 (ed. XXXVI).